4 de agosto de 2013

Radicalismo político


Textos radicalmente partidários não costumam agregar muito ao debate político, devido à extrema parcialidade e a grande quantidade de generalizações e simplificações. O leitor atento acaba passando o olho e descartando a maior parte, pois ficam evidentes as segundas intenções e a consequente falta de credibilidade. A ausência de ponderação gera um desequilíbrio que impede que o texto seja levado a sério fora do círculo partidário em que foi produzido. Concordo com o atual governo em algumas questões e discordo em outras, o mesmo valia para governos anteriores, mas nunca estigmatizei ou rotulei de forma generalizada todo um partido político, como se fosse essencialmente diferente dos demais (para além das diferenças ideológicas, é claro) ou como se todos os seus integrantes fossem iguais.

No saite daquele que é tido como o principal partido de oposição, por exemplo, podemos encontrar sentenças, no mínimo, debochadas, como esta: “esperar honestidade dos petistas é querer demais”.  Ora, qualquer pessoa poderia escrever o mesmo sobre os tucanos, e isso teria exatamente o mesmo grau de relevância, isto é, próximo de zero. Pode-se argumentar que nas páginas de um partido político o que eu deveria esperar encontrar fosse exatamente isso: partidarismo superficial. Sim, concordo, mas acho que o espaço seria melhor aproveitado se fosse usado para propor o debate sobre questões relevantes, ao invés de servir a provocações triviais.

O problema torna-se maior quando o mesmo tipo de comportamento toma conta da grande mídia. Faz tempo que tem faltado ponderação a alguns órgãos de imprensa. Um exemplo é a revista Veja, que hospeda em seu portal, entre outros de alinhamento semelhante, os blogues dos colunistas Augusto Nunes e Reinaldo Azevedo, que adoram escrever textos e mais textos sobre o visual e o modo de falar da presidente. Repetir que Lula é analfabeto é um de seus maiores prazeres. Nos comentários, costumam esculachar e censurar aqueles que exprimem opiniões diferentes, impedindo qualquer possibilidade de debate. Os petistas são referidos como “petralhas”, na mesma linha de demonização partidária a que me referi inicialmente. A crítica séria até aparece, mas raramente. No entanto, mais engraçada que a ridicularização infantil promovida contra membros do governo é a deferência com que tratam seus ídolos da oposição. Enquanto Dilma é chamada de “executiva de araque”, FHC merece um bom grau de respeito. A questão de Veja, no entanto, não é simplesmente ideológica, mas criminal. Desde que foram descobertas as ligações de um de seus mais importantes editores com a organização criminosa de Carlinhos Cachoeira e, por tabela, com políticos da oposição (envolvidos com a mesma organização criminosa), episódios que pareciam resultado de simples perseguição política tornaram-se mais claros, como o famoso caso do “grampo sem áudio” (acusação de que um diálogo entre o ministro do STF Gilmar Mendes e o ex-senador Demóstenes Torres teria sido monitorado, porém até hoje sem a menor evidência). Capas com denúncias inacreditavelmente estapafúrdias, como dólares de Cuba vindo em caixas de uísque, mostraram-se fruto da atuação desastrada de um grupo de arapongas deslumbrados. Deixemos a revista relegada, pois, a seu triste papel. Acrescentarei apenas a recomendação do abrangente levantamento feito pelo jornalista Luís Nassif, “O caso de Veja” (excelente trocadilho, por sinal).

Talvez, como alegam alguns, a percepção de um certo partidarismo na grande imprensa seja apenas consequência do posicionamento ideológico do observador. Isso pode estar mais correto se estivermos nos referindo à imprensa escrita. Afinal, ali podemos encontrar alguma dissonância, como Jânio de Freitas e Vladimir Safatle na Folha, além da possibilidade de aprofundamento e revisão dos temas em voga ao longo das edições, resultando até mesmo na alteração da percepção geral a respeito de determinado evento. Mesmo assim, os editoriais são mais uníssonos e, de algum modo, parecem refletir-se na pauta, como se percebe no otimismo dedicado a alguns governos, contrastando com o pessimismo estampado contra outros. Não devemos nos esquecer de que a subjetividade e, portando, também a parcialidade, já estão presentes desde o momento da escolha dos temas que merecerão destaque. E aqui o jornalismo televisivo mostra-se mais viciado: o ritmo da televisão não permite rodeios ou um maior nível de detalhamento. O que é destacado ou escondido pode ter enorme influência sobre o senso comum. Atira-se as imagens contra a retina do telespectador e segue-se adiante, sem muito espaço para retornos. A opinião vem empacotada junto com a notícia, nas declarações dos chamados “especialistas”. E aí acaba ocorrendo algo desastroso: a interdição do debate a respeito dos temas relevantes para a sociedade. É como se qualquer questão admitisse um único ponto de vista. A discussão e a contextualização simplesmente não acontecem. Ao tratar de qualquer assunto, como, por exemplo, a situação da Venezuela ou a atuação dos movimentos sociais, principalmente aqueles ligados à questão agrária, apresenta-se até mais de um entrevistado, mas todos com opiniões muito semelhantes, geralmente negativas no caso desses exemplos específicos. Por que não expor o fato de que existem visões diametralmente opostas sobre quase qualquer tema?

O próprio ministro do Supremo Tribunal Federal, Joaquim Barbosa, incensado pela mídia devido à sua atuação no julgamento do chamado “mensalão”, afirmou, em seu discurso no evento promovido pela UNESCO na Costa Rica em comemoração ao Dia Mundial da Liberdade de Imprensa, que faltam pluralismo e diversidade política e ideológica à imprensa brasileira. E completou: “Os principais jornais impressos de circulação nacional são inclinados para a direita no campo das ideias”. O caso do “mensalão” é, inclusive, mais um bom exemplo da ausência de variedade na grande imprensa: a maioria dos veículos evitou uma análise mais detalhada, que pudesse ressaltar o contraditório e toda a complexidade do processo. Preferiu seguir quase que exclusivamente a linha da acusação e da relatoria. Era como se a condenação incondicional fosse mais importante do que a apreciação justa dos autos. Como se um resultado não condenatório fosse significar, automaticamente, a desmoralização da corte. E é exatamente isso o que sugere recente editorial do jornal O Globo, numa estranha tentativa de pressionar os ministros na análise dos embargos apresentados pelos réus. O periódico finge não perceber que condenar alguém por um crime que não esteja suficientemente provado é tão desmoralizante quanto absolver o criminoso cuja culpa é evidente. Sobre as incoerências do julgamento como um todo, recomendo o excelente livro de Paulo Moreira Leite, “A outra história do mensalão - As contradições de um julgamento político”, além das colunas e matérias do autor sobre o assunto nas revistas Época (na internet) e IstoÉ.

No que se refere ao comportamento durante as eleições, não podemos deixar de mencionar os casos mais famosos ou revelados por quem acompanhou tudo pelo lado de dentro. O apoio da grande mídia ao então presidenciável Collor, o “caçador de marajás”, incluindo a vergonhosa edição de um debate, não pode ser esquecido. Ricardo Kotscho, em entrevista a Eugênio Bucci, relembra um episódio da cobertura das Caravanas da Cidadania, com as quais Lula percorreu o país antes do pleito no qual Fernando Henrique elegeu-se presidente pela primeira vez: “Quando houve a pressão das redações em cima dos repórteres - ‘Vocês têm que dar pau, é demagogia, é populismo do Lula, não sei o quê’ - o mais jovem repórter que estava lá foi cobrado também. Aí ele falou no telefone na frente de todo mundo, porque só tinha um telefone na portaria do hotel, era uma promiscuidade telefônica, todo mundo sabia de tudo. Ele disse para o chefe dele o seguinte: ‘Olha, eu vou continuar mandando as matérias com aquilo que eu vejo, eu não vou mentir, eu não vou entrar nessa, se vocês quiserem, vocês me demitam’. E continuou mandando, todo dia, as matérias dele, que saíram até o último dia da viagem”. Após as eleições de 2006, das quais Alckmin saiu derrotado, os jornalistas Rodrigo Vianna e Luiz Carlos Azenha tiveram que deixar a Rede Globo, pois se recusaram, assim como outros jornalistas, a assinar um abaixo-assinado afirmando a isenção da emissora na cobertura daquele pleito. Segundo Vianna, alguns jornalistas chegaram a ir até a sala do diretor de jornalismo para manifestar sua discordância quanto ao tendenciosismo praticado naqueles dias. Já Azenha relata ter ouvido telefonema de importante repórter para o ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, “dizendo que a Globo pretendia entregar a eleição para o tucano”. Depois, “instado pelo próprio ministro”, teria confirmado sua impressão. Em 2010, para finalizar esta pequena série de exemplos, temos o hilário episódio da tentativa da mesma Rede Globo de transformar uma simples bolinha de papel em um pesado objeto a atingir o cocuruto do então candidato José Serra. Neste caso, a desconstrução do engodo veio rápida e pelas múltiplas vozes da internet. Conta-se que até os jornalistas da redação de São Paulo, da mesma emissora, custaram a acreditar na insistência dos colegas do Rio em reafirmar o “atentado”.

O fato é que o moralismo seletivo, que mostra e critica as falhas de uns e ignora as de outros, principalmente quando disseminado pela quase totalidade dos grandes meios de comunicação, acaba prestando um desserviço às tentativas de construção de uma sociedade melhor. Sem contar que, na busca por articulistas dispostos a fazer esse tipo de jogo, acaba-se por abrir mão da qualidade. Não faltam exemplos de previsões negativas que não se cumpriram e que simplesmente desapareceram da pauta, sem maiores explicações, incluindo a de um apagão energético ou a de descontrole econômico. E quando as previsões ocorrem no campo da economia, há o grande perigo de contribuírem para a realização de si mesmas, visto que impactam nas expectativas da população. Os riscos desse jogo, entretanto, não têm coibido as análises enviesadas, que valorizam os indicadores que ajudam a corroborar uma visão pré-concebida e ignoram os demais. O prejuízo vai além da compreensão econômica e atinge também as análises em geral. Marco Antônio Villa é uma amostra de figura que consegue espaço mais pelas posições ideológicas do que pela qualidade das análises. Obcecado pelo julgamento do “mensalão”, chegou a referir-se a ele como a “refundação da República” (perdendo em exagero apenas para a revista Veja, que tentou transformar Joaquim Barbosa no “menino pobre que mudou o Brasil”, talvez para tentar desbancar o verdadeiro menino pobre que realmente teve influência sobre grandes transformações nacionais). Na mesma ocasião, disse que Lula era o grande derrotado das eleições para a prefeitura de São Paulo (naquele momento, o candidato de Lula, Fernando Haddad, que se sagrou vitorioso, estava atrás nas pesquisas, o que motivou a precipitação do comentarista). Seria interessante ver como Villa refere-se a Serra ou FHC, para fins de comparação, e tenho a forte impressão de que seria um tanto cômico. O procurador-geral da República, Roberto Gurgel, é merecedor de críticas por diversos motivos (estranhos arquivamentos de processos, engavetamentos de investigações, licitação direcionada, declarações públicas um tanto irresponsáveis), mas, para Villa, as críticas sempre farão parte de uma estratégia orquestrada para desmoralizar o já tão citado julgamento. Em um único texto, afirma que o Supremo Tribunal Federal está sob pressão, mas faz questão de pressionar a instituição, ao afirmar que “seria uma humilhação para o STF e para a sociedade brasileira” caso o resultado fosse diferente do esperado por ele. Pelo visto, não faltam juízes entre os historiadores, economistas, astrólogos e demais colaboradores dos grandes jornais.

Nos espaços reservados aos comentários dos leitores, nos portais dos grandes jornais, o clima não é mais ameno. Pelo contrário: ali o radicalismo praticamente tomou conta. Talvez por não haver a menor preocupação com um mínimo de credibilidade ou com a manutenção de uma imagem de integridade, em grande parte devido ao anonimato, abundam as distorções, manipulações e, principalmente, grosserias. Quando falo de grosserias, refiro-me a estupidez de verdade. Ataques tão virulentos que fariam corar o próprio capeta (caso este existisse). Um exemplo simples: na quase totalidade das matérias sobre Chico Buarque que se referem exclusivamente a sua obra, como o simples anúncio de uma nova turnê, chovem comentários a respeito de sua posição política (Chico tem um histórico de apoio a candidatos de esquerda), recheados de ofensas do tipo “velho gagá”, “bêbado desvirtuado”, “hipócrita extremista”, além das tradicionais pragas impronunciáveis. O nome de Lula está sempre presente, mesmo que a notícia seja sobre os resultados da última rodada do Campeonato Brasileiro de Futebol, geralmente acompanhado dos adjetivos “analfabeto”, “apedeuta”, “imundo”, “nojento” e por aí vai. Fiz uma rápida pesquisa para ver se FHC merecia tratamento semelhante, mas descobri que, mesmo nas matérias sobre ele, o pessoal gosta mesmo é de xingar o ex-operário. Ao procurar matérias sobre outros assuntos, um pouco mais distantes da política tradicional, acabei descobrindo a predominância de um perfil bastante conservador nos espaços reservados ao público. Em uma notícia sobre um estudante que defendia o direito de usar saias, a truculência dos comentários voltou-se contra a suposta orientação sexual do rapaz, que sequer é mencionada no texto. Truculência, é claro, no pior estilo homofóbico.

Das áreas de comentários dos leitores para as redes sociais é um pulo. Enquanto a principal característica daquelas é a virulência desmedida, nestas destacam-se as distorções e mentiras. O que direi agora poderá surpreender aqueles que acreditam em tudo o que leem. Lula não está entre os homens mais ricos do mundo e nunca esteve na capa da revista Forbes por esse motivo. Nem ele nem seus filhos são donos de extensas propriedades rurais no país (engraçado como ninguém se preocupa com o valor da fortuna de FHC ou da família de Serra). As falsas postagens sobre esse assunto costumam até ser ilustradas, mas com a foto de uma escola superior de agricultura ligada à Universidade de São Paulo. Não existe “bolsa-reclusão”, “bolsa-presídio”, nem nada com esses nomes ou que funcione da forma como os farsantes costumam divulgar. Nenhuma reportagem foi impedida de ir ao ar na tevê pelo governo, pelo menos nos últimos vinte anos. Se você está assistindo a uma reportagem em uma rede social, pode ter quase certeza de que a mesma foi ao ar, mesmo que o texto de apresentação diga o contrário; se não tiver ido, deve ter sido por causa de uma decisão interna da emissora ou resultado de alguma determinação judicial muito específica, mas não por imposição governamental. E é bem provável que muitas das frases revoltantes que você atribui a determinadas figuras públicas nunca tenham sido ditas. Mesmo assim, o denuncismo fácil grassa pelas redes: qualquer pessoa sente-se no direito de fazer acusações contra qualquer outra, mesmo que não consiga apresentar elementos comprobatórios ou indícios suficientes.

E quanto aos que afirmam que a democracia está ameaçada e, ao mesmo tempo, pedem o fechamento do congresso? Ignorando momentaneamente a contradição, pergunto: o que será que pretendem colocar no lugar? Os militares? Parece-me que a grande maioria da população não se interessa pela política oficial. No máximo, acompanham alguma coisa pelos telejornais. Esse afastamento colabora com a disseminação de uma visão equivocada: a de que todos os políticos são iguais entre si, diferentes do restante da sociedade e essencialmente corruptos. Este texto não irá negar que o ambiente político brasileiro está contaminado desde o nascimento pelos conluios e conchavos, e nem que percorrer o caminho da ascensão política é esbarrar a todo momento nos limites da ética, mas aqueles que acompanham mais de perto as movimentações dos poderes país afora sabe que existem muitas divergências e correntes diferentes, várias opostas entre si, e que, eventualmente, surgem grandes surpresas, no bom sentido. Dentro do congresso e do senado, e também entre os ministérios, encontraremos figuras realmente abomináveis, mas também indivíduos que procuram fazer da política um instrumento em favor de um país mais justo.

Infelizmente, as distorções produzidas pela mídia e, principalmente, por pessoas mal intencionadas nas redes sociais, acabam dando um forte impulso à manutenção da despolitização. Historicamente, o discurso da democracia ameaçada, que precisaria ser urgentemente tomada e reconstruída para garantir sua manutenção, sempre foi usado pelos golpistas, interessados em sobrepor seus interesses aos anseios democráticos. Os recentes atritos entre os poderes legislativo e judiciário, por exemplo, não são ameaças à democracia, e sim indícios de seu funcionamento. Porém, não é isso o que divulgam as páginas dos vários grupos nas redes sociais que se dizem “anticorrupção”. Sob o mote do combate aos malfeitos, divulgam propaganda partidária, com o objetivo de promover certos candidatos em detrimento de outros. Os indivíduos mais conscientes sabem que corrupção é um problema sério, que acomete o sistema político como um todo, afetando boa parte dos principais partidos, aqui e no restante do mundo (não existe nenhuma democracia no mundo sem corrupção, e só o fortalecimento e o amadurecimento das instituições democráticas pode ajudar a controlá-la). É extremamente inadequado tratar de um problema tão sério utilizando-se de partidarismo, pois isso não contribui em quase nada para as soluções. Mas é exatamente isso o que fazem esses grupos, que chegam a agir como se a corrupção se restringisse ao setor público (qualquer crítica séria a respeito dos fatores que afetam a vida em sociedade deve mirar também o poder econômico, que foi um dos principais responsáveis pela atual crise econômica internacional e ainda provocará sérios problemas em sua ânsia por controle na busca do lucro). Vale repetir a máxima: não existem corrompidos sem corruptores. Mas como explicar que mentiras e distorções sejam aceitas e espalhadas tão facilmente? Onde está o crivo pelo qual todos deveriam passar as informações relevantes para a coletividade? Estaria a internet ainda em sua infância, num país onde boa parte da população só foi incluída no espaço digital muito recentemente? Todos devem ser livres para escolher os candidatos de sua preferência, mas essa escolha nunca deveria ser baseada em falsos critérios ou em uma visão desvirtuada. Pense: até que ponto aquilo que você acha que conhece a respeito de alguém ou algo é mesmo verdade? Você seria capaz de tentar livrar-se dos conceitos formados a respeito de pessoas, movimentos, instituições, procurando identificar as peças de informação que o ajudaram a construir tais conceitos, refletindo sobre a possibilidade de ter internalizado certos dados mais por repetição do que pela possibilidade de verificação de sua veracidade?

Lula não é santo, mas santo ninguém é. Ao longo de sua trajetória política, deve ter feito concessões que traíram suas próprias convicções ou de pessoas que nele depositaram sua confiança. Imagino que isso seja comum no meio. Assim como FHC, é vaidoso quanto a suas realizações. Parece-me, no entanto, que está muito longe de ser um simples “farsante sem princípios”, como afirmam certas figuras tenebrosas que circulam pelo colunismo “jornalístico” nacional. Se tudo de ruim que dizem sobre Lula fosse mesmo verdade, certamente tais acusações estariam sendo repetidas à exaustão no ambiente midiático tradicional. Seu governo não rompeu todas as amarras com os setores que sempre ocuparam as estruturas de poder (embora tenha rompido algumas), assim como nenhum outro antes dele, mas é quase certo que, se tivesse tentado fazê-lo, encontraria uma resistência que poderia ter impedido as conquistas alcançadas. Apesar disso, conseguiu muitas realizações positivas (de novo, assim como FHC), principalmente no que diz respeito às camadas mais necessitadas da população. Tais realizações foram extremamente coerentes com a história de vida do retirante nordestino e líder dos movimentos grevistas dos metalúrgicos.

Nas manifestações que tomaram conta das ruas em junho de 2013 pudemos observar o radicalismo de uns poucos entre o comportamento mais equilibrado da maioria. Radicalismo esse que se manifestou não apenas no vandalismo e na violência praticados por alguns, mas também nas tentativas de grupos oportunistas de tentar influenciar a porção pouco politizada dos protestos a mirar em alvos políticos específicos. Os vários protestos tiveram em comum a diversidade de bandeiras - exceto as excessivamente partidárias, que eram recebidas de forma bastante hostil - e um alto grau de generalização das reivindicações (todos são contra a corrupção, mas haverá inúmeras divergências no momento de discutir os detalhes da necessária reforma política), porém, apesar disso, conseguiram mobilizar a classe política. O movimento poderia ter ido além da crítica aos poderes midiático e político e denunciado também as injustiças decorrentes da grande influência do poder econômico (que muitas vezes é quem determina as ações questionáveis dos outros dois), como fizeram outros movimentos ao redor do mundo, mas creio que a invasão por grupos conservadores, o perfil despolitizado da maioria e um direcionamento por parte da mídia acabaram impedindo que isso ocorresse. Foi possível perceber, inclusive, que os grupos do tipo “anonymous”, no Brasil, que também tentaram apropriar-se indevidamente dos movimentos e definir pautas, são mais sectários e politicamente conservadores do que os seus semelhantes em outros países. Claro que isso não diz respeito a todos os grupos, pois, apesar de existirem canais que se colocam como representantes “oficiais” dos mesmos, o fato é que tem muita gente se dizendo “anonymous” por aí, porém com pautas extremamente divergentes entre si.

Chega o momento, no entanto, em que o ato de gritar palavras de ordem deve ceder espaço à elaboração de soluções. E aí o ritmo é necessariamente mais lento e os consensos são menores. É a hora de “tomar partido”. Apesar de o caráter apartidário ter sido defendido com sinceridade por uma grande parcela daqueles que manifestaram sua indignação, para muitos esse foi apenas um manto a esconder a falta de opções viáveis no campo da oposição, mas que não disfarçava a birra contra o partido atualmente no poder e até contra os partidos mais à esquerda. Uma das bandeiras das esquerdas, aliás, é o fortalecimento dos partidos políticos, desde que atuem verdadeiramente como tal, e não como entidades para simples fins eleitoreiros. Os partidos de verdade funcionam como importantes atores na promoção de debates sobre temas relevantes para a sociedade, além de colaborarem com a difusão do conhecimento político e com a organização de grupos com interesses comuns, a fim de dar visibilidade a suas demandas. Em oposição ao personalismo e à busca por salvadores da pátria, a organização partidária entende que a construção de uma sociedade melhor é um trabalho coletivo, fruto de discussões e deliberações. E essa estrutura, quando bem aproveitada, é a que permite que emerjam os quadros mais adequados às funções representativas.

E, uma vez chegadas as eleições, faz-se necessário escolher entre as opções disponíveis. Dentre aquelas que se apresentaram até o momento, considero Dilma a mais adequada para a condução do país na direção da expansão do quadro de justiça social. O governo trabalhista dos últimos anos avançou muito nesta questão: houve grande redução das desigualdades entre pessoas e entre regiões, geração recorde de empregos, aumento considerável da renda, forte combate à fome e à miséria extrema, fortalecimento das liberdades democráticas, superação satisfatória de uma das maiores crises internacionais de todos os tempos, cujos efeitos ainda abalam vários países, inclusive “desenvolvidos”, mas que acabaram sendo menos impactantes por aqui, graças ao fortalecimento do mercado interno e à diversificação dos parceiros no comércio exterior, a qual reduziu a dependência em relação a nações específicas. Mais recentemente, tivemos a redução da taxa de juros, a pressão pela redução dos abusivos “spreads” bancários, a diminuição das tarifas de energia elétrica, a equiparação dos direitos trabalhistas dos empregados domésticos aos dos demais trabalhadores. O nível de ensino aumentou, a mortalidade infantil diminuiu. Programas como “Luz para Todos”, “Minha Casa, Minha Vida” e o sistema de cotas mudaram para melhor a vida de muitas famílias, renovando suas esperanças e, principalmente, a de seus filhos, que começaram a planejar caminhos diferentes daqueles percorridos pelas gerações anteriores. Não concordo com vários aspectos da forma como foram feitas, aparentemente sem um planejamento de longo prazo, mas tivemos ainda desonerações fiscais, como incentivo à indústria. Também discordo, obviamente, de certas alianças espúrias com vistas à governabilidade, prática padrão em qualquer governo desde a redemocratização, mas está nas mãos dos eleitores a tarefa de não eleger os candidatos de partidos fisiológicos, reduzindo, assim, a importância de acordos com eles. Porém, não há como passar a borracha por cima de avanços que são reais e que vêm acontecendo ano após ano. As solicitações nos cartazes das manifestações eram de natureza diferente das tradicionais manifestações trabalhistas: desta vez, estavam mais voltadas à situação das cidades, que se deve, em grande parte, ao próprio modelo capitalista. Levantamentos do DIEESE demonstram que, na última década, houve uma alteração no perfil das greves, cujas reinvindicações passaram de defensivas (com o intuito de reclamar direitos usurpados, como salários atrasados) para propositivas (com a finalidade de conquista de novos direitos, como maiores aumentos reais dos salários e redução da jornada de trabalho). Sinal de que vivemos outros tempos, distantes daqueles no qual o presidente fazia um pronunciamento anunciando a necessidade de aumento de impostos, em meio a desemprego, arrocho salarial, flexibilização de direitos trabalhistas, apagão energético em consequência de ausência de planejamento para o setor, submissão a interesses estrangeiros em troca de empréstimos financeiros, desmonte da estrutura estatal, processos de privatização executados de maneira danosa e que quase atingiram a Petrobras, que, nos governos trabalhistas posteriores, serviu de apoio a várias políticas desenvolvimentistas importantes, mas que, naquela época, estava prestes a tornar-se “Petrobrax”. É importante reconhecer também os méritos dos governos anteriores, como a aceleração do processo de estabilização econômica. E é claro que ainda há muito a avançar.

Entretanto, para chegar à decisão final, é preciso aguardar pela definição dos nomes e a apresentação das propostas. Apesar da comparação entre as duas últimas tendências que tomaram conta do Planalto nos anos recentes, é saudável tentar fugir do bipartidarismo e analisar também as demais opções. Estas, no entanto, pelas aproximações e abordagens que vêm fazendo, sinalizam estar alinhando-se mais à direita, apesar do evidente espaço à esquerda. Declarações contra as estruturas de representação democrática ou caracterizadas por um denuncismo seletivo, além da defesa de um verdismo ora pueril, ora oportunista, estão entre os pontos que têm me afastado dessas alternativas. Fazer uma escolha, porém, não significa odiar ou discriminar aqueles que fazem opções diferentes.

O presente texto está claramente posicionado mais à esquerda no espectro político, conforme evidenciado pelos exemplos escolhidos, mas tomei bastante cuidado para evitar injustiças e distorções. Devo ter tido sucesso nessa empreitada até certo ponto, pois é praticamente impossível que um texto não reflita o posicionamento e as expectativas de seu autor. O que estou criticando aqui são as tentativas de disfarçar o tendenciosismo sob o manto de uma pretensa e, às vezes, hipócrita, imparcialidade. A única solução viável é a pluralidade, isto é, a abertura do espaço público para as mais diferentes opiniões, ao invés do atual cenário mercantilista que associa a liberdade de expressão ao poderio econômico. É claro que isso precisaria vir acompanhado de uma necessária melhoria nas áreas de educação e cultura, para que a ausência de conhecimento político não termine por estimular a disseminação de ideias rasas e perigosas à verdadeira democracia, conforme esboçado no decorrer dos recentes protestos urbanos. Uma democracia de verdade, permita-me o leitor ressaltar, deve ser composta por instituições fortes que permitam o respeito às maiorias e também às minorias.

Critico também o partidarismo incondicional e o preconceito contra quem exprime posicionamentos diferentes. Os partidos são importantes, mas só se deve apoiar determinada agremiação enquanto há concordância com seus preceitos e práticas, e não abraçá-la como se faz com os times de futebol, nos quais admiração dos torcedores está mais próxima do campo das paixões. A adoção de posturas mais propositivas é importante, pois pode ajudar a minimizar a visão preconceituosa de que apenas o próprio voto seria autêntico e consciente, enquanto as escolhas daqueles que optam por candidatos diferentes resultariam apenas de interesses pessoais e desinformação.

Dou muito valor a postagens que procuram estimular o debate político, o compartilhamento de opiniões e o aprimoramento do pensamento crítico, mas, pelas razões aqui expostas, acho perigosas aquelas que estimulam um radicalismo que pouco contribui para o aperfeiçoamento da vida em sociedade. Em tempos de ânimos exaltados, de “ódio” ou “nojo” frente a visões diferentes, em que as pessoas preferem agredir para depois tentar entender, em que até a grandiosa atitude de mudar de opinião virou motivo de críticas, em que acusações irresponsáveis disseminam-se tal qual ervas daninhas, torna-se muito importante preservar os espaços de comunicação e de interação das atitudes extremadas. Cada espaço tomado pelo radicalismo representa uma redução das possibilidades de decisões acertadas no futuro.

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P.S.: Mencionei no texto que “não existe ‘bolsa-reclusão’, ‘bolsa-presídio’, nem nada com esses nomes ou que funcione da forma como os farsantes costumam divulgar”. Recebi uma pequena contestação, mas mantenho o que disse. Esclareço: o auxílio-reclusão, que existe, é muito diferente da tal "bolsa-reclusão" que o pessoal anda divulgando. Do modo como apresentam, é sim uma grande mentira. O auxílio-reclusão é um seguro, pago aos dependentes de um trabalhador que contribui com o INSS e que, porventura, venha a ser preso. O objetivo é não deixar desamparadas pessoas que, muito provavelmente, nada têm a ver com o ocorrido. É isso. Posso até concordar que, se o crime praticado tiver sido um assassinato ou outro crime hediondo, o seguro seja dividido também com os dependentes da vítima, mas sem desamparar os dependentes do contribuinte que incorreu em delito. Isso está muito distante da ideia de que basta ser preso para que a família receba uma “bolsa”. E mais distante ainda da grande bobagem de dizer que “compensa ser preso” (parece que tem gente que não conhece a realidade dos presídios nacionais). Um fundamentalista que ache que o mundo se divide entre mocinhos e bandidos pode achar que um seguro como esse é injustificável; afinal, ele ignora que ninguém conhece o futuro e que todos estão sujeitos a serem presos em alguma circunstância.

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