4 de novembro de 2010

A informação contaminada


Durante a campanha eleitoral que se encerrou recentemente, circularam pelas discussões argumentos dos mais diversos. Um dos assuntos que acabou sendo trazido à tona foram as propostas do PNDH-3 (o 3º. Programa Nacional de Direitos Humanos), que voltou a receber críticas que considero injustas, algumas das quais baseadas em boatos.

Direi agora algo que desenvolverei melhor em futuros textos, mas atribuo a quantidade de boatos que surgiram nesse período à desinformação, inclusive entre a classe média, que costuma julgar-se muito bem informada e acaba tomando importantes decisões baseada em conhecimentos que considera confiáveis e suficientes, mas que não são. Em várias conversas, acabei encontrando uma classe média extremamente despolitizada, mas que costuma atribuir tal característica apenas às camadas menos favorecidas. Não consigo encontrar palavra melhor para descrever a situação: preconceito.

Certo dia, em uma mesa de bar, um conhecido, assombrado, contou-me que o presidente Lula havia assinado sem ler uma lei que proibia a exposição de símbolos religiosos no país. O patrão lhe mostrara a notícia através de um correio eletrônico. Imediatamente percebi que se tratava de mais uma distorção do PNDH. O programa não é uma lei, e sim um conjunto de propostas, e a proibição de símbolos religiosos se limita a repartições públicas, em respeito à diversidade religiosa, visto que os tais símbolos são quase que exclusivamente católicos, e ao Estado laico. Quanto à informação de que o documento havia sido assinado sem leitura, isso me parece mais uma desculpa dada pelo presidente para moderar os ânimos daqueles que viam absurdos em um conjunto de propostas tido por ele como normal (assim como por mim e muitos outros), possivelmente motivados pela pressão exercida pela mídia, descontente com algumas das propostas, conforme já expus em um texto anterior.

Por isso, a partir do próximo parágrafo, apresento um texto que eu havia publicado há alguns meses no Observatório da Imprensa, tratando de argumentos contrários ao programa.

O embate entre mídia e governo, a respeito de possíveis atentados contra a liberdade de expressão orquestrados por este último, não encontra eco na sociedade em geral, pois a imprensa, que deveria divulgar de forma clara as atitudes do poder, converteu-se em parte interessada. Sua apresentação do possível problema acabou obscurecida por seus anseios. O resultado foi a informação contaminada ou, em última instância, a desinformação.

Podemos até supor que haja algum traço de autoritarismo em algumas das propostas do PNDH, mas é impossível não imaginar que esses possíveis traços tenham sido reforçados em demasia pela cobertura jornalística. Na verdade, não precisamos supor coisa alguma. Basta ir direto ao texto do programa para esclarecer quaisquer dúvidas. Acontece que toda a cobertura sobre o assunto acabou soando como uma espécie de editorial compartilhado por todos os grandes veículos de comunicação, no qual a interpretação direta do texto foi substituída por uma ótica própria do meio. O que restou à população, no máximo, foram muitas dúvidas.

Vários textos, em diversos meios, inclusive aqui no blogue, procuraram demonstrar que a tal tentativa de cerceamento da liberdade de imprensa não passa de um conjunto de iniciativas de consolidação dos direitos humanos e de regulamentação de artigos constitucionais. Sob esta visão, algumas das manifestações daqueles que procuram defender a imprensa contra a suposta ameaça parecem distorcer um tanto o conteúdo das propostas governamentais.

Veja-se, por exemplo, o que disse Judith Brito, presidente da ANJ (Associação Nacional de Jornais), em texto publicado no jornal O Globo. Logo nos parágrafos introdutórios, Judith faz questão de ressaltar o que chama de "posturas autoritárias 'chavistas'" de alguns dos "grupos de apoio" do presidente, entregando que o tom do texto deve manter o mesmo nível alarmista das diversas matérias sobre o assunto publicadas pelos grandes jornais. Em seguida, afirma que o Conselho Federal de Jornalismo não foi criado devido à "reação indignada da sociedade". Sabemos que isso não é verdade, pois esse tipo de debate não costuma seduzir a população. No máximo, a reação indignada foi da imprensa, autoproclamada voz da sociedade. Uma população cuja maioria das pessoas não possui o hábito de ler jornais e para a qual os programas informativos televisivos não estão entre os favoritos - o que, apesar de tudo, é lamentável - não empregaria tempo e esforços nesse tipo de ação.

O texto é encerrado citando a proposta de "elaborar critérios de acompanhamento editorial a fim de criar um ranking nacional de veículos de comunicação comprometidos com os princípios de Direitos Humanos, assim como os que cometem violações". Devo ser dono de uma mente extremamente autoritária, pois, sempre que leio esta passagem do PNDH, não percebo gravidade alguma. Muito pelo contrário. Afinal, trata-se de uma proposta que pretende destacar, no bom e no mau sentido, os veículos de comunicação, baseando-se em um parâmetro que não poderia ser melhor: o respeito aos direitos humanos. O objetivo claro é a redução da violação desses direitos. Não consigo imaginar uma "visão oficial", como sugere a autora, sobre algo tão universal como os direitos básicos dos indivíduos.

Quanto à cassação de concessões, é bom lembrar que as estas são públicas, devendo, portanto, atender a interesses sociais para que sejam mantidas. Os procedimentos de outorga e renovação das mesmas estão descritos na Constituição (artigo 223) e o texto do PNDH não menciona alterações nas regras, mas apenas sugere que se leve em conta o respeito aos direitos humanos, o que vai de encontro à necessidade de "respeito aos valores éticos e sociais da pessoa e da família" (artigo 221 da Constituição). É importante destacar que a suspensão de concessões é proposta como medida extrema, a ser empregada após a aplicação de várias outras penalidades administrativas. Na prática, sabemos que isso significa que o recurso, provavelmente, não chegaria a ser utilizado, mas serviria apenas como referência, a lembrar o compromisso social das concessões, declarado constitucionalmente. Pensar o contrário disso seria exagerar na comparação entre o Brasil e um certo país vizinho.

O deputado federal Miro Teixeira (PDT-RJ), no mesmo O Globo, também exagera sobre um possível envolvimento da população no debate, ao afirmar que ela se mobilizaria "em favor da própria liberdade de expressão e de informação". Exagera, primeiro, porque a sociedade não anda tão engajada, infelizmente; segundo, porque ela não se posicionaria automaticamente ao lado da imprensa; e terceiro e mais importante: tais liberdades não parecem estar ameaçadas.

A visão um tanto distorcida a que tivemos acesso nos últimos meses parece brotar das velhas confusões entre coisas que são diferentes: liberdade de imprensa e liberdade de expressão; controle e regulação; estatal e social. A ausência de distinção entre esses termos domina, por exemplo, um texto do jornalista Sandro Vaia, publicado no jornal O Estado de S. Paulo. De cara, o jornalista destaca um certo caráter controlador das ideologias esquerdistas, como se esse tipo de desvio coubesse unicamente à esquerda. Todos sabemos que a radicalização domina uma parcela dos dois lados do espectro político, e que boa parte da direita, sem abandonar suas ideologias, não hesitaria em tentar controlar tudo o que pudesse caso encontrasse oportunidade ou julgasse necessário. Apenas alguns exemplos: a maioria das ditaduras militares sul-americanas ao longo da História e o recente comportamento do governo estadunidense após o atentado de 11 de setembro de 2001, quando até a liberdade de expressão, tão exaltada naquele país, sofreu mutilações.

Após esvaziar a definição da palavra "controle", subtraindo-lhe o significado de "verificação administrativa, inspeção, fiscalização" (Dicionário Online de Português do Brasil), Sandro sugere que as propostas apresentadas no programa da Secretaria de Direitos Humanos seriam apenas "palavras do mais puro malte petista". Entretanto, não apresenta nenhum argumento que permita concluir que as propostas interessam apenas a um partido político específico.

O texto de Vaia traz ainda alguns pontos destacados ao final, sobre os quais farei os seguintes comentários, por considerar que os mesmos servirão como contraponto também a outros escritos:

- Toda a sociedade, incluindo as entidades que representam a mídia, pode, abertamente, participar do debate, e seria louvável que cada vez mais pessoas e entidades se envolvessem. O problema é que o próprio comportamento da grande mídia acaba por desestimular um maior envolvimento nesse sentido, restando a participação de alguns poucos cidadãos, digamos, mais "antenados" em assuntos políticos.

-Apesar de propor iniciativas sociais de mediação e conciliação para resolução de conflitos, visando ao desafogamento do Judiciário, o que poderia ser muito positivo, o texto do PNDH, no que diz respeito a conflitos agrários, destaca a necessidade do envolvimento do Poder Judiciário (diretriz 17, objetivo VI, ação c), do Ministério Público, do poder público local, de órgãos públicos especializados e da Polícia Militar (ação d), e não de "organizações sociais". Creio que isso não signifique o "abastardamento do Poder Judiciário".

- A "Comissão da Verdade" se propõe a apurar e esclarecer (e não "julgar", como menciona Vaia) as "violações de Direitos Humanos praticadas no contexto da repressão política ocorrida no Brasil no período fixado pelo artigo 8º. do ADCT da Constituição, a fim de efetivar o direito à memória e à verdade histórica e promover a reconciliação nacional". Esta é a versão da proposta que ainda continha a palavra "repressão", apenas para mostrar que não havia nada de mais. Ou será que começaremos a negar que a repressão ocorreu? Mesmo que o texto esteja se referindo a violações cometidas por apenas uma das partes, qual seja a dos agentes do Estado, esta é exatamente a tarefa que se espera desse Estado, pois estamos falando de uma espécie de reconhecimento público dos próprios atos, com vistas a contribuir com a parte que lhe cabe no preenchimento de uma lacuna histórica, mantida há um bom tempo pelo comportamento de alguns dos órgãos públicos. Sim, os tempos são outros, o governo é outro, mas o Estado não deixa de guardar o fantasma do que já foi, principalmente se não der o passo simples de revelar o que "ele mesmo sabe" e que está escondido em documentos existentes, porém indisponíveis. Falar em um outro lado a ser "julgado" (novamente: a intenção não é julgar) demonstra incompreensão do verdadeiro objetivo da proposta.

É claro que a imprensa não deve abdicar, nunca, de seu papel de fiscalizar e denunciar os abusos do poder. Porém, a denúncia deve ser justa, isenta, o que implica, naturalmente, que será de interesse da sociedade, e não de determinados grupos. É importante considerar que a mídia, enquanto constituída por poderosas corporações munidas de grande penetração e influência sobre a sociedade, também deve ser fiscalizada, não pelo governo, mas por cada cidadão. O que o governo pode fazer é tornar disponíveis os canais e instrumentos que permitam que seja feito esse acompanhamento, a fim de evitar os abusos que também existem do outro lado do embate: o lado da imprensa.

Resposta a um leitor

Seria preciso fazer malabarismos argumentativos para tentar equiparar o Brasil a Cuba ou à Venezuela no diz respeito à liberdade de imprensa. A realidade é muito diferente nos três países. Chamar a reação da imprensa e demais setores de "tímida" é distorcer a realidade de uma oposição exagerada a um conjunto de medidas que nada tem de ideológico, pois segue recomendações internacionais quanto ao respeito aos direitos humanos, sendo apenas abrangente, conforme esperado. O programa não menciona nada a respeito de censura ou "fim do direito de propriedade" e, em sua primeira versão, não tentava "impor o aborto", mas apenas descriminalizá-lo (as duas coisas são muito diferentes). Ouvi dizer que as propostas referentes ao aborto foram revistas ou suprimidas em versões posteriores das propostas. Assuntos como propriedade e aborto necessitariam ser discutidos à parte, dada sua complexidade. Reforço apenas que é muito fácil taxar o pensamento alheio como ideologia, tentando desqualificá-lo, sem perceber que a maioria das próprias opiniões possui também um fundo ideológico. Ideologia por ideologia, de preferência na concepção de simples conjuntos de ideias e opiniões, fico com aquela que procura garantir o respeito e a dignidade a todas as pessoas, e não com a que teima em limitar a vida alheia baseada em convicções particulares.

Seguem as ligações para este e outros textos que publiquei no Observatório da Imprensa. A versão lá publicada contém ligações para os textos que estão sendo aqui contestados:
- Mídia, governo e a informação contaminada
- O que caberia à imprensa fazer?
- Caixa postal cheia (ao mesmo tempo, vazia)


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