14 de agosto de 2012

Fora dos planos


Ilustração: Lucas Paiva

Era um dia como outro qualquer. A mesma rotina, os afazeres de sempre, semana após semana. Aquela agenda vinha sendo construída pouco a pouco ao longo dos seis últimos anos. Sua programação diária petrificava-se com o passar do tempo. Os dias tinham sempre o mesmo ritmo: levantava da cama, fazia o que tinha a fazer no banheiro, trocava a roupa e partia para o trabalho. Retornava um bom tempo após o anoitecer, assistia à tevê e ia dormir. Solitário, consumia fora de casa a maior parte das refeições. Como consequência da repetição, realizava suas tarefas automaticamente, sem precisar pensar muito.

Mas, naquele dia, algo estava diferente: ao sair de casa, a caminho do trabalho, teve a estranha sensação de que havia alguma coisa errada. Assim que deixou seu “templo de solidão”, pensou na possibilidade de ter deixado aberta alguma torneira. Imaginou-se com água até a altura da cintura quando regressasse. Após uma intensa reflexão, descartou essa e algumas outras hipóteses. Seguiu adiante.

Caminhou um pouco, parou. Examinou o próprio corpo, a fim de verificar se havia esquecido alguma peça de roupa. O paletó estava lá. A gravata também. As meias... Enfiou a mão dentro da calça, deu uma leve puxada no tecido que lá dentro se encontrava. Tudo normal.

Andou até a esquina e parou novamente. A estranha sensação de que havia se esquecido de algo o perseguia. Por que aquele dia não podia ser igual aos outros? As roupas sujas já estavam na lavanderia. As compras da semana já estavam na despensa. Seguiu andando. A maleta um tanto pesada começava a incomodar.

Metódico, sentia-se confortável seguindo à risca todas as regras das quais tinha conhecimento, inclusive aquelas que ele mesmo criava para si. Sério, vivia preocupado com a imagem que os outros faziam dele, principalmente no ambiente de trabalho, pois pensava que o mínimo deslize poderia comprometer a carreira. Por isso, começou a angustiar-se quando percebeu que, dado o avançado da hora, poderia acabar atrasando-se. Mesmo assim, antes de cruzar as ruas que possuíam semáforos, aguardava que estes exibissem o sinal vermelho aos motoristas. Só então atravessava, mesmo que tivesse diversas oportunidades de fazê-lo em segurança com o fluxo de veículos aberto. Frente à possibilidade de atraso, no entanto, e após algum tempo e algumas ruas, passou a atravessar quando as vias estavam livres, independente da cor da lâmpada sinalizadora.

Em certo momento, recordou-se do chefe, gordo e mal humorado. Foi quando um jovem de aparência mal cuidada aproximou-se, pediu-lhe alguns trocados para uma refeição e, então, pôs-se a caminhar a seu lado, enquanto aguardava pela resposta. Parecia frágil e, ao mesmo tempo, ameaçador.

- O rapaz é sadio. Por que não está trabalhando?

- Olha, não foi pra responder a esse tipo de pergunta que abordei o senhor. Preciso comer agora! Tem algum emprego que vai me arranjar comida agora?

Enfiou a mão em um dos bolsos do paletó, retirou algumas moedas e entregou-as ao jovem. Não sabia se tinha sido por medo, ou por ter sido convencido pela argumentação rápida e direta, ou, ainda, para ver-se livre do rapaz, visto que sua companhia poderia estar tornando mais lenta a caminhada. O moço agradeceu e tomou outra direção.

Ainda sem ter certeza do que o incomodava, apertou o passo. Após muito caminhar, encontrava-se bem próximo à empresa. Bastante cansado, parou, apoiou-se em um muro, colocou no chão a maleta e afrouxou o nó da gravata. Ofegante, enfim descobriu o motivo do desconforto: lembrou-se de que havia deixado em casa o carro com o qual ia trabalhar todas as manhãs.

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