31 de outubro de 2012

Legalização de drogas:
um passo para além do lugar-comum


Há alguns meses, uma comissão especial de juristas encarregada de preparar o anteprojeto do novo código penal brasileiro propôs a descriminalização do uso de drogas consideradas ilícitas. A proposta é interessante e representa um avanço no tratamento da questão, mas contém alguns problemas que ainda precisam ser debatidos. A melhor solução pode ser um passo ainda mais audacioso, porém acompanhado pela manutenção de algumas restrições.

O primeiro problema que se identifica é a criação de uma situação dúbia. Propõe-se que seja considerado legal o porte de pequenas quantidades, destinadas ao uso pessoal. A quantidade máxima permitida seria determinada pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e deveria ser suficiente para cinco dias de consumo. No entanto, o tráfico ainda seria criminoso, e é exatamente aí que reside o embaraço, pois se estaria tornando legal uma prática que estimula uma atividade ilegal. Estaríamos, então, criando um motivo legítimo para ações criminosas.

Comparemos com outro tipo de delito: a receptação de produtos roubados é considerada criminosa porque estimula outro crime, que é o roubo em si. Faz muito sentido que toda a cadeia seja criminalizada. No caso das drogas, está sendo proposta uma quebra. Da produção da droga até o seu consumo, haveria uma ruptura a partir da qual o crime não mais existiria. O problema é que não existe consumo sem tráfico e não existe tráfico sem produção. O usuário passaria a ter o direito de consumir a substância de sua preferência, mas teria que adquiri-la das mãos de um bandido. A atividade ilegal passaria, portanto, a ter um estímulo considerado legal. Uma situação, no mínimo, curiosa.

É verdade que haveria a opção de cultivar e preparar a própria droga, o que também seria permitido, mas, na prática, é bem provável que a maioria dos usuários continuasse a adquirir os produtos já preparados. O plantio e o preparo, além de trabalhosos, poderiam gerar constrangimentos indesejáveis.

Outro problema é a equiparação de substâncias distintas. É correto dar o mesmo tratamento a drogas com características tão diferentes, com efeitos tão diversos? A liberação do consumo de drogas leves, como a maconha, e de outras com efeitos mais devastadores, como o craque, traria as mesmas consequências para a sociedade? Parece claro que não.

É importante registrar que, em regimes democráticos plenos, a situação ideal é aquela na qual os indivíduos são livres para fazer o que bem entendem, desde que não interfiram negativamente no destino de outras pessoas. Quando há restrições demais, corre-se o risco de que várias delas sejam desnecessárias e de interesse exclusivo de pequenos grupos sociais influentes. Já pudemos observar a grande diversidade de pensamentos e opiniões que coexistem nas sociedades humanas. A melhor maneira de respeitar esse pluralismo é evitar que a opinião de alguns indivíduos imponha-se sobre as demais. Tal situação ideal só seria possível em sociedades bastante maduras, o que não parece ser, ainda, o caso do Brasil. Porém, é necessário que os avanços aconteçam.

Um modo prudente de promover mudanças, sem criar muitos efeitos colaterais negativos devido ao choque com aqueles que ainda não aceitam completamente a ideia, daria-se através de alterações menores na direção do objetivo desejado. Por mais que boa parcela da população esteja pronta para lidar com um possível novo cenário, sempre existirão grupos contrários, o que, inclusive, é a maior evidência da democracia. Por isso, devem-se evitar as transformações bruscas. A utilização de modificações paulatinas também é vantajosa porque permite que a sociedade teste as consequências das mudanças promovidas. Quando os eventuais problemas são detectados a tempo, fica mais fácil recuar alguns passos. O objetivo final seria tentar garantir a condução da coletividade até um estágio melhor do que o atual na maioria dos aspectos, e nunca o contrário.

Nesse sentido, outra estratégia de muito valor é a observação do que ocorre em outros países que tenham adotado medidas semelhantes às pretendidas, tomando-se sempre a cautela de considerar as diferenças socioculturais. Não se trata de simplesmente copiar as regras de um país em outro, mas os casos da Holanda e, mais recentemente, de Portugal, ambos países que passaram a tolerar o consumo e, no caso do primeiro, até o comércio controlado, podem ser bons exemplos. No primeiro país, houve grande queda dos índices de criminalidade. No segundo, a taxa de consumo de substâncias consideradas ilícitas continua menor do que a de vários países europeus nos quais a repressão ainda é considerada a única saída.

É impossível tratar do presente assunto sem que nos lembremos de que o consumo de substâncias que alteram quimicamente o estado de consciência é uma prática extremamente antiga. Tanto que é impossível precisar o seu início. Durante a maior parte da história da humanidade, o costume não era proibido, e isso não parece ter sido um grande problema. O que se percebe, inclusive, é que os maiores problemas relacionados às drogas surgiram a partir de sua criminalização. É como se o combate gerasse consequências piores do que o problema original: altos índices de violência; surgimento de grandes, poderosas e lucrativas organizações criminosas voltadas à produção e distribuição de entorpecentes; inundação do sistema bancário e financeiro com valores provenientes de tais atividades ilícitas; cooptação de elites, polícias e governos; disseminação de doenças, como a AIDS, devido à restrição de recursos decorrente da utilização clandestina.

Em vista do exposto, podemos perceber que precisamos de uma solução que busque resolver os problemas relacionados às drogas, porém respeitando as liberdades individuais e evitando a criação de situações incertas, como a criminalização de apenas uma parte de uma corrente indissociável. A descriminalização de toda a cadeia de produção, comercialização e consumo de drogas leves, como a maconha, pode ser a solução de que necessitamos. A vantagem mais evidente seria uma considerável diminuição dos problemas citados: do poder de influência do tráfico à violência desmedida por ele promovida. Além disso, o governo poderia ter um maior controle e mais dados confiáveis a respeito da produção e do consumo dessas substâncias, além de dispor de uma nova fonte de arrecadação de impostos. Haveria, ainda, a redução de enormes gastos com o combate aos crimes relacionados.

Ademais, além de tratar de maneira diferente substâncias que são diferentes, estaríamos diferenciando também os vários tipos de usuários. O problema estaria no abuso e na dependência, e não no uso recreativo, como ocorre com o álcool, por exemplo. Este, aliás, pode ser mais nocivo à saúde do que certas substâncias consideradas ilícitas. E, justamente devido aos excessos, a implementação dessa proposta precisaria vir acompanhada de medidas educacionais e voltadas à orientação, além de uma rede de apoio e recuperação de dependentes, como ocorre em Portugal. Uma vez constatada a dependência, diretamente na rede de saúde ou a partir de solicitação do aparato de segurança, o encaminhamento a uma unidade de recuperação poderia ser compulsório - o que não chegaria a contrariar a questão das liberdades individuais, visto que aqui estamos tratando de um quadro patológico, com grande potencial de impacto sobre a coletividade. Desse modo, haveria um desvio do foco para o problema real, que é a dependência química e suas consequências. A existência do cenário de guerra atualmente mantido em decorrência dessa questão passaria a parecer inimaginável.

Abusos devem ser evitados e várias medidas nesse sentido foram cogitadas pelos juristas que prepararam o anteprojeto do novo código. Propõe-se, por exemplo, que o consumo deva ser individual, em local privado, longe de crianças e adolescentes, e que nunca anteceda atividades que exijam concentração, como a condução de veículos ou a execução de certos trabalhos. Nota-se, portanto, mais restrições do que aquelas impostas ao cigarro ou ao álcool, o que é bastante adequado. Se estes estivessem sendo liberados hoje, seria prudente adotar ressalvas semelhantes.

Enfim, a legalização de toda a cadeia de produção e consumo de drogas leves seria mais trabalhosa e mais custosa aos cofres públicos, em um primeiro momento, do que a proposta da comissão de juristas, pois exigiria a construção e manutenção de uma rede de orientação, apoio e tratamento. Porém, tal rede já se faz necessária, independente da implantação de qualquer outra medida. Além disso, grande parte dos recursos para essa implantação viria dos impostos sobre as substâncias tornadas legais e da economia nos gastos com o combate aos crimes ligados ao tráfico. Portanto, a médio prazo, a legalização de drogas leves, da produção ao consumo, seria a solução mais adequada, pois evitaria cenários incertos como aqueles apresentados anteriormente, reduziria uma conjuntura criminosa inaceitável e estaria mais alinhada à essência democrática. É bem possível que a proposta dos juristas seja uma tentativa de dar um passo mais prudente na direção de uma situação desejada. O importante, entretanto, é que o debate aconteça e deixe de ser considerado tabu por um número cada vez maior de pessoas.

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