3 de março de 2010

O ateu que encontrou Deus
- Parte I: Gênesis (A criação)


Prólogo - Parte I - Parte II - Parte III - Parte IV - Parte V - Parte VI - Parte VII - Epílogo

Alceu tomava o café da manhã ao lado de sua esposa, Elza. Ao longe, a tevê dizia a ninguém algo sobre a visita do Papa ao país, que aconteceria dali a alguns meses. Uma das frases da repórter chegou aos ouvidos do jovem arquiteto, despertando-lhe a atenção: "Os fiéis confeccionam faixas e cartazes e preparam-se para enfrentar uma longa viagem até o local onde irão recepcionar o sumo pontífice".

- Nada contra a busca por algum tipo de conforto ou por referências para o embasamento de opiniões, mas acho que ainda há muito desperdício de tempo e esforços nas religiões.

Dona Santinha, contratada para cozinhar e ajeitar a casa, ia passando por ali e ouviu o comentário do patrão.

- Falando de religião, Seu Alceu? - indagou a velha senhora, que era sempre muito bem tratada e gozava de liberdade para conversar sobre os mais diversos assuntos com aqueles que lhe pagavam o salário.

- Sim, Dona Santinha. Acredito que seria interessante a realização de algumas revisões, que poderiam ser interessantes até para os próprios fiéis.

- Por favor, não comecem vocês dois com essas conversas. - tentou intervir Elza. Como era de costume, a tentativa não surtiu o efeito esperado.

- Não confio no Papa, pois sou de religião protestante - manifestou-se Dona Santinha - mas a gente tem que buscar a salvação de algum jeito, não é?

Elza havia terminado o café. Levantou-se e dirigiu-se ao quarto.

- Me diga uma coisa, patrão. - continuou a funcionária - Se Deus Nosso Senhor realmente não existe, como é que há tanta coisa bonita no mundo? Quem foi que criou tudo isso?

- Olha, Dona Santinha, em primeiro lugar, a senhora sabe que não gosto que fique me chamando assim, de patrão. Quanto à pergunta, veja que há alguns problemas com ela. Por que todas as coisas precisariam de um criador?

- Ora, tudo o que existe foi criado por alguém, não foi? A mesa, a cadeira, o relógio...

- Para, pode parar aí. - interrompeu Alceu - Talvez o termo "criação" não seja o mais adequado. Essas coisas todas foram construídas, montadas, fabricadas, a partir de materiais que já existiam previamente. Claro que após um processo de concepção. Mas quando a senhora pensa em Deus criando o universo, imagino que considere que ele tenha feito isso a partir do nada, não é? E não apenas organizando ou reorganizando materiais.

- Mas Deus tem poder, Seu Alceu! E vai que tinha alguma coisa lá antes, pra ele usar na criação.

- Como assim, Dona Santinha? Veja bem. A senhora está dizendo que Deus precisa existir porque tudo o que existe deve ter um criador. Se tudo precisa de um criador, responda-me: quem teria criado Deus? Se ele existe, também precisaria ter sido criado, não é?

- Não, não. Deus não precisa ter sido criado. Que absurdo, Seu Alceu!

- Olha só. A senhora tinha um problema no começo: quem teria criado o universo? Para resolver esse problema, a senhora deu uma resposta para a qual não existe nenhuma comprovação e, ainda por cima, criou um outro problema: quem teria criado Deus? Acho que esse problema que a senhora criou é ainda mais difícil que o primeiro. Tentar explicar como Deus teria sido criado daria muito mais trabalho, visto que se trata de uma entidade que sequer conseguimos observar. Sem contar que, na verdade, não estaríamos resolvendo problema algum, pois sempre teríamos que explicar como teria sido criado o criador do criador do criador do universo.

- Mas Deus sempre existiu, Seu Alceu! Ele é eterno!

- Agora a senhora está admitindo que podem existir coisas sem criadores. Se é assim, então já não temos mais aquele problema que tínhamos no começo. Por que indagar sobre quem teria criado o universo? Ele não precisa ter sido criado por alguma outra entidade. Se Deus pode simplesmente existir, então o universo também pode. E olha que o universo parece ser algo bem mais simples do que um ser inteligente capaz de projetar e criar universos.

Alguns segundos de silêncio. A expressão de Dona Santinha entregava que ela estava pensativa.

- E de onde a senhora tirou que Deus, caso existisse, seria eterno? - prosseguiu Alceu, tentando quebrar o silêncio.

- Foi o pastor lá da igreja quem disse. - respondeu Dona Santinha após mais alguns segundos - Mas sabe que eu ainda não tinha parado para pensar desse jeito que o senhor falou aí? Como a gente explica, então, a origem de tudo?

- Explicar com toda a certeza a gente não consegue.

- Olha aí! Tá vendo só? Precisa de Deus pra explicar!

- Não, não, Dona Santinha. Nada disso. Apesar de não conseguirmos explicar de uma maneira definitiva, temos algumas hipóteses a respeito. A criação divina pode até ser uma delas. Não há motivos fortes, no entanto, para que alguém leve sua vida e tome suas decisões baseando-se nessa hipótese em especial. Afinal, é apenas uma hipótese, e nem é mais provável do que qualquer outra que formulássemos. Qual a dificuldade de se ficar com a dúvida enquanto não aparece uma resposta conclusiva? São tantas as coisas que não sabemos... Por que se agarrar tão fortemente a uma explicação e abandonar tantas outras, que estão sendo investigadas através de um árduo trabalho? Apesar de não terem conseguido chegar a um veredito, os cientistas já têm muitas pistas e observações sobre a origem do universo. Bem mais do que tinham há pouco tempo atrás.

- Então a ciência é a dona de toda a verdade?

- Não, claro que não. Nem os cientistas a consideram assim. Todas as suas afirmações podem ser quebradas por simples evidências. E eles mesmos tratam de destruir cada conceito que pareça errado frente a novas descobertas. É errando e acertando que tentam se aproximar cada vez mais daquilo que pode ser a verdade. Dadas as limitações de nossos sentidos e de nossos métodos, é difícil imaginar que algum dia deteremos alguma verdade absoluta. Mas repito: não há problema algum em se ter dúvidas. Apesar disso, a busca pela verdade deve prosseguir sempre. E isso é algo que a religião não costuma incentivar. Ao proclamar que já possui a explicação, ela abre mão da dúvida e, assim, pode acabar por desestimular a busca por respostas.

- Seu Alceu, o senhor podia conversar com o Pastor Mosé no culto de sexta-feira.

- Pra quê, Dona Santinha?

- Vou falar pra ele sobre essa nossa conversa. Acho que ele vai achar interessante e vai querer conversar com o senhor também.

- Hum... Não sei, não. Acho que ele vai é dizer à senhora para pedir demissão, para se afastar dessas ideias "demoníacas".

- Cruz credo, Seu Alceu! - exclamou Santinha, fazendo o sinal da cruz - Não fale desse jeito!


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