23 de março de 2010

O ateu que encontrou Deus
- Parte II: Êxodo (Libertação e identidade de um povo)


Prólogo - Parte I - Parte II - Parte III - Parte IV - Parte V - Parte VI - Parte VII - Epílogo

As casas eram todas simples. Apenas alguns trechos das vias eram cobertos por asfalto. Àquela hora, muitos moradores estavam pelas ruas, nos botecos, caminhando ou simplesmente batendo papo na calçada. Bastava observar por pouco tempo para perceber que muito lhes faltava. Era claramente um lugar do qual os governantes lembravam-se menos do que de outros. Talvez em época de eleições toda essa gente surgisse em suas memórias, porém apenas como valiosos votos. "E eu, que não creio, peço a Deus por minha gente. É gente humilde, que vontade de chorar". A canção passava-lhe pela cabeça, enquanto Dona Santinha indicava o caminho. Enfim chegaram à pequena igreja, improvisada em um cômodo apertado onde antes funcionava um botequim.

Durante todo o culto, Alceu olhava ao redor, observando as pessoas que ali se encontravam. Rostos cansados, marcados. Apesar da aparente dispersão, ouvia grande parte do que proferia o pastor, pois este gritava bem alto:

- Só Jesus pode vos libertar!... Afastem-se de qualquer tentação e de todo pecado!... Só na igreja é possível ser realmente livre!... Cuidado com a música do mundo, com a televisão, com os pensamentos sujos, com aquelas pessoas que vão querer lhes influenciar!... Libertem-se dos vícios e fiquem livres de todo o mal!... Nunca deixem o caminho do Senhor! Façam sempre aquilo que ele espera! Contribuam! Sacrifiquem uma parte do seu suado dinheirinho, que é pouco, mas volta o dobro, o triplo! Quanto maior o sacrifício, maior as bênçãos, porque Deus é justo!

- Aleluia! - repetiam os fiéis, após cada frase proferida pelo pastor em uma entonação mais destacada.

As frases pareciam desconexas e contraditórias, pois evocavam, alternadamente, a liberdade e a contenção. Terminada a cerimônia, Dona Santinha conduziu Alceu até o pregador. Apresentou-os um ao outro.

- Então está aqui o famoso Senhor Alceu. Já ouvi falar do senhor. O arquiteto filósofo. Ou seria filósofo arquiteto?

-Por favor, Pastor Mosé, sem formalidades. Chame-me apenas pelo nome.

- Claro, claro. Afinal, nosso único senhor é aquele que nos acompanha a todo momento. Já publicou alguns livros, não? - perguntou Mosé.

- Apenas um, nada importante. Uma simples reflexão sobre a vida. Me tornei um pouco conhecido devido à entrevista para a tevê local, na ocasião do lançamento. Daqui a pouco me esquecem. - respondeu Alceu, um pouco encabulado, esboçando um tímido sorriso.

- Diga-me uma coisa, Seu Alceu... Digo... Alceu. O que tem contra Deus? Por que não gosta dele?

Alceu assustou-se. Ainda mais sem graça, respondeu:

- Olha, Pastor Mosé, na verdade, não é que eu tenha algo contra Deus. E é preciso deixar claro que neste momento estou me referindo ao Deus dos cristãos, conforme definido pelas religiões mais disseminadas em nossa sociedade. O fato é que eu considero sua existência, digamos, um tanto improvável. Como eu poderia não gostar de algo ou alguém que, em minha concepção, provavelmente, não existe?

- Ora, Seu Alceu, e a Bíblia? O senhor, digo, você não crê na palavra do próprio criador?

- Esse termo, "crença", é geralmente utilizado para fazer referência a opiniões adotadas com convicção, relativas a coisas não verificadas, as quais as pessoas levam em consideração por razões mais subjetivas. Nesse sentido, esta não é uma questão de crença. Mas, se considerarmos um sentido mais amplo, no qual a palavra "crença" signifique a opinião a respeito da verdade ou possibilidade de algo, então o que tenho a dizer é que costumo apresentar um embasamento para aquilo que estou afirmando. Qualquer pessoa pode fazer o mesmo, mas, da comparação entre as justificativas, pode-se concluir a respeito do que é mais ou menos provável. Prefiro lidar com evidências e uma postura mais cautelosa a respeito do que pode ser verdade.

- Verdade? Pois a verdade está na Bíblia!

Dona Santinha fez um movimento com a cabeça, concordando. Alceu retrucou:

- Como o pastor é capaz de fazer essa afirmação com tamanha certeza? A Bíblia é um conjunto de livros muito antigos. É difícil precisar quem os escreveu, como foram escritos, quando exatamente, sob que influências, com que propósitos. Hoje temos evidências históricas que comprovam que grande parte do que é ali relatado nunca ocorreu de verdade, apesar de alguns pesquisadores religiosos empreenderem estudos nos quais tentam adequar as evidências a uma visão pré-concebida. Sabemos, por exemplo, que o universo é bem mais antigo do que esses escritos parecem sugerir, que a vida na Terra ocupa uma pequeníssima fração do tempo de existência desse universo, que os animais não foram todos criados ao mesmo tempo e que nunca ocorreu um dilúvio de proporções globais do qual eles foram salvos numa arca. A figura de Jesus Cristo pode não passar de um grande mito, com referências históricas não cristãs bastante raras e extremamente duvidosas. Há muitas divergências quanto a isso e um Jesus histórico pode ter existido. Mas por que acreditaríamos em algumas partes, se tantas outras já se mostraram falsas? Os textos estão repletos de contradições e imprecisões. Diversas passagens tratam como normais coisas que hoje consideramos abomináveis, como a escravidão, a discriminação da mulher, os sacrifícios humanos, o massacre de pessoas que optaram por crer em divindades diferentes, entre outras barbaridades.

- Mas, homem, as imprecisões devem-se à forma como os livros foram copiados e traduzidos ao longo dos séculos, para que chegassem até nós. Afinal, durante muito tempo, não existia a impressão. Além disso, os textos receberam enxertos e sofreram alterações durante todo esse tempo, com base em interesses dos grupos que os detinham.

- Mais um motivo para que desconfiemos deles. - interrompeu Alceu.

- A noção de moral é diferente da nossa - prosseguiu o religioso - porque as escrituras, como você mesmo disse, foram produzidas em uma época distante, quando os valores eram diferentes desses que hoje professamos.

- Pastor, se as escrituras tivessem mesmo sido ditadas ou inspiradas por um ser interessado no bom recebimento de seu conteúdo ao longo de muito tempo, a visão moral que nelas encontraríamos seriam universais e atemporais. Se Deus tiver transmitido ensinamentos que hoje se tornaram obsoletos, então não podemos ler a Bíblia sem um critério externo que nos permita distinguir nela o que está correto e o que está errado. Portanto, ela nada possui de absoluto. Perceba, ainda, que nenhuma de suas palavras revelam algum fato que vá além do conhecimento que a humanidade possuía na época. É algo que um ser superior poderia ter feito e que serviria, hoje, como evidência da sua existência. O que isso pode significar? Que Deus evitou fazer revelações realmente importantes ou que a Bíblia foi escrita por homens comuns, limitados como nós, sem nenhuma inspiração sobrenatural? É verdade que algumas pessoas tentam relacionar certas passagens bíblicas a descobertas científicas recentes, mas essa é apenas uma possibilidade oferecida pela linguagem dúbia e rebuscada. Se um conjunto de livros escritos há milênios, numa época em que a humanidade não dispunha de tecnologia para documentar de forma precisa os acontecimentos, for o indício mais forte da existência de um ser superior, então esse ser, definitivamente, não sabe escolher adequadamente os métodos para nos comunicar o que deseja, apesar de sua alegada perfeição.

- E as profecias?

Dona Santinha e o pastor fitaram Alceu. Este, após um breve intervalo, respondeu:

- Várias profecias foram feitas ao longo do tempo, grande parte em linguagem metafórica, não apenas pela Bíblia. Veja as previsões de Nostradamus, por exemplo. Sua linguagem misteriosa, cifrada, facilita que se faça correspondências entre elas e fatos que aconteceram depois. Mais de um fato por previsão, em muitos casos. Várias profecias bíblicas já foram associadas a certos fatos no passado e hoje são associadas a outros. Veja, pastor, que duas coisas podem dar-se com uma profecia: ela pode cumprir-se ou não. A história da humanidade já possui uma quantidade suficiente de séculos para que algumas profecias tenham parecido se realizar. Imagine só: se não fosse possível relacionar nenhuma previsão a algo que ocorreu em algum momento após sua divulgação, aí teríamos um cenário realmente espantoso. Eu mesmo me arrisco a fazer algumas para os próximos dois mil anos, com grandes chances de acerto. Alguém duvida que veremos muitos desastres naturais? Ou que a tecnologia ocupará cada vez mais a vida das pessoas?

- E as igrejas, as instituições, as civilizações e tudo o mais que foi erguido a partir do que consta na Bíblia?

- O pastor deve perceber que a pergunta não faz muito sentido. Muitas instituições podem ter se baseado unicamente na Bíblia. Outras se basearam nela, mas também em outros pilares. Algumas adquiriram um valor que vai além do conteúdo das escrituras, como um valor social, por exemplo. Outras não. Nada disso diz algo sobre a veracidade dos escritos bíblicos.

- Alceu, muita gente interpreta de forma errada esses livros tão valiosos.

- Pastor, como pode usar esse tipo de argumento? As interpretações da Bíblia são inúmeras, repletas de grandes diferenças entre si. A causa de tamanha variedade é, justamente, a linguagem confusa e imprecisa. A consequência são todos os conflitos religiosos que temos hoje e que ocorreram ao longo da história, desde a simples discussão entre integrantes de diferentes igrejas, passando pelo preconceito, por exemplo, contra homossexuais, até guerras! - exaltou-se Alceu - Se o melhor argumento a favor de Deus que o pastor consegue apresentar for a Bíblia, então sugiro que procure por outros, pois não imagino como esse livro pode ser a favor de coisa alguma. Veja quantas religiões há no mundo, nas mais diferentes culturas, cada qual com sua mitologia e seus rituais, mono ou politeístas. O pastor vai mesmo afirmar que apenas as religiões baseadas nas escrituras estão corretas? Que todo o restante das pessoas está errado? Mesmo sem ter um modo de saber se sua interpretação é a mais correta dentre tantas? Mesmo sabendo que, se tivesse nascido em determinadas regiões do planeta, provavelmente seguiria uma religião completamente diferente, como o hinduísmo ou o islamismo, que não se baseiam nos mesmos escritos?

Houve um breve intervalo, após o qual o pastor sugeriu:

- Olha, Alceu, você tem argumentos muito bons, mas precisa conversar com um velho amigo meu: o Padre Messias. Ele foi meu conselheiro espiritual, um verdadeiro guia, durante o período mais difícil que tive de enfrentar. Mas a vida acabou por conduzir-nos por caminhos diferentes e eu acabei vindo para o protestantismo. Até hoje tenho grande respeito por ele e a certeza de que poderá iluminar suas ideias.

Dona Santinha olhou na direção do teto.

- Não creio que seja necessário. - disse Alceu, desculpando-se em seguida.

- Eu insisto. Entrarei em contato com ele e agendarei um encontro.

Alceu uniu fortemente os lábios e ergueu a sobrancelha, mostrando-se um tanto contrariado. Despediram-se e, enquanto os dois visitantes se retiravam, pôde-se ouvir o som de um telefone a chamar, vindo de uma pequena sala ao fundo da igrejinha. Dona Santinha voltou-se para Alceu:

- Deve ser o superintendente.

- O quê? Vocês têm um superintendente?

Pastor Mosé retirou o fone do gancho e posicionou-o ao ouvido.

- Muito boa noite, Seu Jaó! Como tem passado?

- Bem, Seu Mosé, muito bem. Como foi a movimentação hoje?

- Foi boa. Ainda não pude conferir a arrecadação, Seu Jaó, mas parece que foi satisfatória.

- Mais agilidade, Mosé, por favor!

- É que eu estava conversando aqui com o Seu Alceu, o senhor deve conhecer, ele já publicou um livro. O infeliz não acredita no poder de Deus.

- E você acredita, Seu Mosé?!

Pausa.

- Como assim, Seu Jaó?

- Esquece, Mosé, esquece. Você é mesmo de outro mundo. Vou falar com um amigo que mantém uma instituição de divulgação religiosa. Pedirei que procure esse tal Alceu.

Nas ruas do humilde bairro, as pessoas se divertiam. Nas casas, aprontavam-se para as festas, os bailes, bares e boates improvisadas. No fundo da igreja, Mosé mantinha o olhar fixo no antigo aparelho telefônico verde. Cabisbaixo.


Nenhum comentário:

Postar um comentário