22 de junho de 2010

O ateu que encontrou Deus
- Parte IV: Números (Um, nenhum, mais ou menos)


"Há uma pergunta que me parece dever ser formulada e para a qual não creio que haja resposta: que motivo teria Deus para fazer o universo? Só para que num planeta pequeníssimo de uma galáxia pudesse ter nascido um animal determinado que iria ter um processo evolutivo que chegou a isto?"
José Saramago


- Alceu? Aqui quem fala é o Padre Messias. Anote, por favor, o endereço que lhe direi agora.

- O quê? Pra quê?

- Você tem um encontro marcado com o Bispo João, na sexta-feira da próxima semana. Ele quer conversar a respeito do debate sobre religião do qual você irá participar na universidade.

Ainda sem compreender quais poderiam ser as reais intenções do tal bispo, Alceu anotou com dificuldade o endereço em um pequeno bloco, tombando a cabeça para manter o telefone junto ao ouvido, com a ajuda do ombro. Estava na rua, a caminho do bar onde se encontraria com os irmãos. Após atravessar mais três ruas a pé, adentrou o estabelecimento no qual se reuniam com alguma frequência.

Caio, cujo escritório era bem próximo dali, já ocupava seu lugar à mesa de número 12. Lia o jornal enquanto esperava pelos outros dois. Ricardo, professor de literatura, chegaria a qualquer momento. Ele escrevia uma coluna quinzenal para uma revista de uma pequena cidade vizinha.

- Você vai achar esta notícia interessante, mano. Uma pesquisa recente constatou que 59% dos brasileiros acreditam na evolução das espécies.

- Puxa! Esses números parecem-me exagerados. Não creio que tanta gente aceite bem esse fenômeno, que costuma ser muito mal compreendido.

- Acontece que há um detalhe: esses 59% também acreditam em Deus e, portanto, acham que ele teria conduzido todo o processo. Apenas 8% aceitam que a evolução tenha se dado sem nenhuma interferência sobrenatural.

- Ah, bom... Agora os números parecem mais verdadeiros. Pelo menos estamos melhores que os Estados Unidos.

- Você sabe que, apesar de não me declarar ateu - esclareceu Caio - uma das poucas característica das religiões que me chamam a atenção é a capacidade que elas têm de influenciar as pessoas. Em muitos casos, isso pode resultar em um perigoso tipo de controle.

- Concordo plenamente.

- Veja isso aqui. A pesquisa aponta também que a fé na criação divina é menor entre as pessoas mais instruídas e com melhor situação financeira.

- Essa é uma boa pista para identificar os fatores que tornam um indivíduo mais suscetível a esse tipo de influência.

- Que influência? - perguntou Ricardo, o irmão mais velho, ao chegar ao restaurante e ver o jornal aberto sobre a mesa, na página com os resultados da pesquisa - Não vão me dizer que estavam, de novo, criticando os religiosos?!

- Não, os religiosos não. - respondeu Alceu - Estávamos falando das religiões, isso sim. Mas, em respeito à sua presença, passemos a outros assuntos.

Ricardo não seguia nenhuma religião em especial, mas mantinha a crença em Deus, a quem recorria nos momentos de desamparo. Alceu sempre lhe dizia, em um tom que mesclava jocosidade e gratidão, que ele fora o responsável por fazê-lo começar a refletir sobre o assunto, em uma noite próxima ao Natal, no início da década de 80. Ricardo negava, alegando que, quando fez a revelação a respeito da lenda natalina, Alceu "era muito criança para entender essas coisas".

- Não quero interromper a conversa - falou Ricardo - mas responda-me apenas uma coisa, Alceu. E se Deus existir? E se, ao morrer, você tiver que prestar contas a ele?

Alceu respondeu após alguns segundos:

- Ricardo, o que garante que o deus no qual você acredita seja o correto, e não o deus muçulmano ou os deuses hindus, por exemplo? Você também pode vir a encontrar-se com eles. E talvez precisará prestar contas sobre o fato de ter acreditado no deus errado.

- Alceu, sua pergunta não faz o menor sentido. Afinal, existem o monoteísmo e o politeísmo. Grande parte das religiões, atualmente, é monoteísta, de forma que acreditam que só existe um deus, como no meu caso. Sua questão só teria alguma validade se fosse dirigida a politeístas. Com essa pergunta, você demonstra que, quando é para defender suas crenças, abandona por completo o senso crítico.

O garçom trouxe uma garrafa de cerveja trapista e serviu o líquido aos três.

- Perdoe-me, Ricardo, mas a pergunta que lhe devolvi não contém o erro que você apontou. O sentido do questionamento não foi devidamente compreendido. Na verdade, o que pretendo que você me diga é o que lhe garante que é o seu deus que existe, e não o deus muçulmano ou os deuses hindus. Como pode estar certo de que, dentre tantas crenças existentes, você tenha escolhido aquela que corresponde à realidade?

Caio interveio:

- É verdade. O Alceu tem razão. Suponhamos um grupo "a", monoteísta, que acredite na existência do deus A, e um grupo "b", também monoteísta, que acredite na existência do deus B. O que garantiria a um integrante do grupo "a" que o deus A realmente existe? Ao invés do deus A, não poderia existir, por exemplo, o deus B? Ou até um conjunto de outras entidades? Com tantos deuses dos quais possuímos conhecimento, no mundo e ao longo dos séculos, da mitologia grega, passando por deuses hindus, dos indígenas, dos celtas, das inúmeras tribos africanas, do islamismo, do judaísmo, do mormonismo e tantas outras crenças, será que, caso exista algum deus, este não poderia ser qualquer um desses, ao invés daquele no qual você acredita? A intenção do Alceu foi a de devolver-lhe uma pergunta semelhante à que você dirigiu a ele.

- Você chegou a afirmar também que eu estaria defendendo minhas crenças. - retomou Alceu - Porém, não costumo defender de forma gratuita a veracidade de hipóteses não comprovadas. A palavra "crença", quando mal empregada, procura igualar coisas que são diferentes. Os ateus céticos sempre procuram apresentar as bases de suas conclusões, ao contrário da maioria dos religiosos. Eles geralmente não aceitam como verdade informações não verificadas. Permanecem com a dúvida até o momento em que, porventura, surja algum tipo de confirmação ou evidência. Portanto, não fazem afirmações a respeito do universo como se fossem verdadeiras, mas apenas como sendo parte da base de conhecimentos disponível no momento. Duvidam da existência de Deus, mas não colocam uma explicação sem embasamento no lugar. É claro que existem vários tipos de pessoas que se dizem ateístas, algumas realmente fazendo afirmações absurdas. Agora, se você tiver utilizado o termo "crença" como sinônimo de "opinião", então não vejo problemas.

- Irmãos - insistiu Ricardo - se vocês prestassem um pouco mais de atenção, veriam que, para nós, monoteístas, há um único deus, que é chamado por nomes diferentes. O fato é que existem doutrinas que atribuem características diferentes a esse deus. E, Alceu, ateísmo não é o mesmo que ceticismo.

- Ricardo, a pergunta do Alceu não se limita apenas ao universo das religiões mais difundidas, cujos deuses, digo desde já, não vejo como se fossem um só. Como podem ser atribuídas características tão conflitantes a uma única entidade? Que deus seria esse, afinal? A pergunta refere-se aos mais diversos deuses definidos pelas diferentes culturas ao redor do mundo e ao longo do tempo. Isso pode incluir Shiva, do hinduísmo, Olorum, das religiões de origem africana, entre tantos outros. Ao devolver-lhe uma pergunta parecida com a que você lhe havia feito, sua intenção foi a de explicitar uma falácia. A pergunta "e se Deus existir?", com o sentido de ameaça com que geralmente é proposta, perde o sentido frente à pergunta "e se Baal existir?".

- E é claro que ateísmo e ceticismo não são a mesma coisa. - completou Alceu - Por isso eu não disse apenas "ateu", nem somente "cético". Usei a expressão "ateu cético" para referir-me aos indivíduos que são ateus e céticos simultaneamente, pois faço parte desse grupo. Não concordo com ateus que defendem hipóteses fracas como se fossem verdadeiras. Perceba, no entanto, que o ceticismo costuma conduzir ao ateísmo.

Ricardo rebateu:

- Sua pergunta pode fazer sentido para algumas pessoas, mas não para um monoteísta. Não há deuses para quem acredita em um único ser superior. As religiões mais difundidas acreditam, sim, no mesmo deus. Então, seus adeptos não optam por um deus entre vários disponíveis. Ao incluir deuses de culturas politeístas, você está desviando a discussão, retirando de Deus sua atribuição de criador supremo, para tratá-lo como um espírito qualquer. Eu estaria fazendo algo semelhante se lhe perguntasse qual universo você prefere: este ou um outro que eu inventasse. Uma pergunta mais coerente que você poderia ter feito é: "E se, ao morrer, descobrir que Deus não existe e que perdeu um baita tempo com bobagens, além de ter privado-se inutilmente de alguns prazeres?". Voltando à questão do ceticismo, o que você me diz a respeito da teoria dos memes? Eles não são diferentes de espíritos, pois são entidades imateriais, com uma espécie de vida. Se você acredita neles, não é tão cético assim.

Caio manifestou-se novamente:

- E se a consciência não tiver continuidade após a morte? Como diabos você perceberia alguma coisa após ter morrido? Ricardo, Alceu não incluiu apenas deuses de culturas politeístas, mas também deuses de outras religiões monoteístas. A pergunta sobre outros deuses não faz sentido para um monoteísta, assim como a pergunta sobre um deus não faz sentido para um ateu, pois, na opinião deste, é bem provável que não exista deus algum. Perceba que o Alceu considera improvável a existência dos deuses que mencionou na própria pergunta. O possível encontro com Deus após a morte é tão estranho à visão ateísta quanto o possível encontro com Baal o é em relação à visão cristã. Ao se analisar um argumento, é preciso levar em consideração a intenção do mesmo, isto é, aquilo que pretende o argumentador. Neste caso, a intenção era demonstrar a ausência de valor na ameaça da sua pergunta. A comparação entre as duas perguntas resulta na percepção da falta de sentido em ambas, desde que se leve em consideração o pensamento daqueles a quem estão sendo dirigidas. Devemos reconhecer, no entanto, que é mais provável que o monoteísta assuste-se com a pergunta sobre outros deuses do que o ateu com a pergunta sobre um deus. Afinal, ambas as perguntas exploram uma característica dos religiosos que os ateus não possuem: a disposição para crer em divindades.

- Sem contar que não se deve reduzir as escolhas quanto à religiosidade à simples crença ou descrença em uma entidade superior. Apesar de um ateu considerar improvável a existência de algum deus, os crentes existem. E apesar de você crer em um único deus, os politeístas existem. Para eles, seus deuses existem. E vários desses deuses integram mitologias que procuram explicar o surgimento do universo, assim como o deus dos cristãos. Também existem e existiram outras religiões monoteístas cujos deuses são diferentes do deus católico ou judeu, como, por exemplo, o masdeísmo, apesar do dualismo, também verificado de certo modo no cristianismo. Assim, podemos apresentar várias configurações alternativas. E, retomando o que dizia Caio, um recurso argumentativo como a pergunta que lhe devolvi pode valer mais que uma extensa argumentação, da mesma forma que uma imagem pode dizer mais do que "mil" palavras, como falam por aí. Lembro-me de um exemplo muito engraçado, do pastor que tentou usar uma banana para provar a existência de Deus, dizendo que essa fruta possui características que a adaptam perfeitamente às necessidades humanas, ignorando completamente que as atuais características da fruta foram desenvolvidas pelo homem, através de processos de seleção artificial. O pastor destacava o formato anatômico, a embalagem eficiente, a maciez, etc. Ao que um ateu rebateu: "Por esse raciocínio, o abacaxi deve ter sido projetado pelo próprio capeta".

Todos riram, enquanto mais uma garrafa de cerveja de abadia era servida.

- E os memes? - insistiu Ricardo.

- Um ateu cético encara a teoria dos memes como qualquer outra. Acompanha as pesquisas a respeito, aguarda por evidências e vai construindo sua opinião, sem misticismo. É preciso registrar que memes são muito diferentes de espíritos, pois não possuem natureza sobrenatural. Trata-se somente de unidades de informações e ideias, sem consciência e ações próprias, que dependem de um meio muito particular para existirem: as mentes dos seres humanos e os artefatos criados por eles, como os livros e os computadores. A suposta vida do meme é resultado de uma compreensão falha de sua natureza. É o mesmo que enxergar uma inteligência por trás do processo de evolução das espécies. O que temos nesses casos é uma inteligência aparente, mas não real, e que é confundida com vida.

- Quer dizer, então, que você não tem o menor receio de morrer e descobrir que esteve errado?

- Com base no que acabamos de conversar, não vejo motivos para isso. Mas levemos adiante essa hipótese, apenas para refletirmos um pouco mais. Imaginemos este que vos fala chegando ao céu e encontrando Deus. Alceu, o ateu que encontrou Deus!

Mais risadas.

- Nasci em um mundo repleto das mais diferentes crenças e descrenças. Devido à cultura da região na qual nasci, ouvi desde criança histórias sobre Deus, o do cristianismo. Um pouco mais crescido, descobri que tais histórias simplesmente passam de geração em geração, e que sua origem são uma coleção de livros muito antigos, escritos em uma época que não oferece subsídios suficientes para que se comprove o que neles é dito. São livros doutrinários, semelhantes aos escritos que embasam outras crenças. Livros que falam de coisas que nunca vemos acontecer no mundo real. Nasci em uma época em que a humanidade, através de seus estudos, acumulou uma enorme quantidade de informações, fartamente documentadas e cada vez mais comprovadas pelos modernos recursos que possuímos, e que evoluem sem parar. Diga-me, Ricardo, diga-me, como o Deus que irei encontrar poderá cobrar-me algum tipo de crença cega?

Ricardo refletiu por algum tempo e admitiu:

- Confesso que minha crença possui um certo grau de irracionalidade. Se você me chamar para a discussão com argumentos científicos, dificilmente discordarei deles. É claro que não creio no mito da criação divina, tal como relatado na Bíblia, e em quase nada do que consta nos livros que a compõem. Meu Deus é diferente. Eu o enxergo quando observo o mundo em que vivemos e o modo harmonioso como ele funciona.

- Cada pessoa desenha Deus à sua maneira. - interferiu Caio - Quando ouço alguém a descrever Deus, mais ou menos como você acabou de fazer, sempre fico com impressão de que ele carrega as características da pessoa que o retrata. E olha que quase todo mundo se mete em algum momento a tentar descrevê-lo, sem saber ao certo de onde está retirando as informações. É bem provável que seja das próprias experiências.

- Ricardo, precisamos conversar um pouco mais sobre essa questão da observação do mundo. Você sabe bem que ele não é assim tão harmonioso. Os seres vivos, a natureza, estão repletos de "defeitos" que, quando bem observados, desencorajam qualquer tentativa de atribuir sua criação a um ser inteligente. Analisando apenas o ser humano, encontraremos uma gama de indícios de que não estamos diante da obra de um projetista: de um apêndice sem muita serventia que pode levar-nos à morte aos perigosos trajetos do nervo laríngeo e do canal deferente, entre tantos outros exemplos.

Caio sinalizou ao garçom, solicitando a conta, e emendou:

- No fim das contas, o fato é que as religiões dividem a humanidade, ao invés de uni-la.

- Não se todos acreditassem no mesmo deus. - argumentou Ricardo.

- Como isso seria possível sem imposição? - questionou Caio.

- Eu pergunto outra coisa. - completou Alceu - Qual deus?


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