30 de março de 2011

O ateu que encontrou Deus
- Parte V: Deuteronômio (Revisão da lei em benefício da dúvida)


Prólogo - Parte I - Parte II - Parte III - Parte IV - Parte V - Parte VI - Parte VII - Epílogo

Alceu mantinha-se recluso naqueles dias. Preparava-se para o debate entre fé e secularismo, organizado pela universidade na qual lecionava, que ocorreria dali a algumas semanas. Da sala, no sofá, ouviu tocar o telefone e, logo em seguida, a voz da esposa:

- Querido, um representante de um tal Instituto da Luz do Divino Reino deseja conversar com você.

Alceu dirigiu-se até o cômodo onde instalara um modesto escritório.

- Alô... Sim, tudo bem... Muito prazer, Luciano. Claro, podemos conversar por alguns minutos.

- Do que se trata, Alceu? - cochichou Elza, curiosa.

O marido cobriu o microfone por alguns segundos e respondeu em voz baixa:

- É um instituto de divulgação religiosa. Entrou em contato comigo a pedido de um certo Jaó, um dos dirigentes da igreja que Dona Santinha frequenta.

- Vê se não estende muito a conversa. O jantar está prestes a ser servido.

Alceu sinalizou positivamente com a cabeça e retornou ao telefone. Elza retirou-se para a sala.

- Veja, Luciano, que, do lado das religiões, temos indivíduos que aceitam verdades reveladas e apresentam sentimentos e experiências pessoais como motivos para essa aceitação. Costumam utilizar uma palavrinha estranhamente supervalorizada, “fé”, que parece revestir-se de um poder inexplicável, mas que significa, no sentido religioso, a simples crença em dogmas. Geralmente, ouvem falar a respeito de Deus pela primeira vez durante a infância, uma fase em que são altamente vulneráveis e naturalmente inclinadas à confiança irrestrita nos adultos, através dos próprios pais. É a mesma época em que também costumam ouvir o rico acervo de lendas infantis que todos conhecemos. Acreditam que Deus existe, que ele criou o universo e que os ama. Em alguns casos, os relatos dessas crenças se parecem muito com delírios, porém a sociedade costuma aceitá-los como absolutamente normais. Não estou defendendo aqui nenhum tipo de repressão ou censura, que fique bem claro! O que desejo mesmo é ainda mais liberdade, para que cada indivíduo possa se manifestar como bem entender, imune a influências danosas, mas sempre com respeito à liberdade do outro.

Elza sentou-se e, sem muito a fazer naquele momento, de longe, pôs-se a ouvir aquilo que o marido dizia a Luciano.

- Colocando de um modo simplista, temos, de outro lado, a dúvida. Pessoas que não estão dispostas a aceitar uma explicação por mera conveniência. Levam suas vidas de forma independente de um suposto plano sobrenatural, pois julgam possuir tantos motivos para crer nele quantos para crer em assombrações. Não se importam muito com o fato de não terem todas as respostas, pois sabem que isso seria impossível. Sim, meu caro, isso é uma postura racional. Alguns apreciam tanto essa perspectiva, que se põem a questionar outras pessoas, para que algumas delas também possam, eventualmente, perceber o lado positivo de ser um pouco mais cético. E muitas delas o percebem, ao inquirir a si mesmas. Trata-se de uma postura crítica. Irracional é inventar explicações para aquilo que ainda não foi respondido.

Alguns minutos de silêncio antes de Alceu prosseguir:

- Você é quem está dizendo que a fé não nega a razão e que é um adicional em situações nas quais a razão não permite a tomada de decisões. No entanto, não está apresentando as bases dessa ideia. Pode até ser sua opinião, ou a opinião de mais alguém, mas para que possamos nos comunicar de forma efetiva, as palavras devem ter seus significados respeitados. A palavra “fé” significa fidelidade aos compromissos, lealdade, garantia, confiança e, no sentido religioso, a aceitação de dogmas e afirmações não comprovadas. Tal definição é comum à maioria dos dicionários. Geralmente, quando estou conversando com religiosos, o último recurso para o qual apelam é esse: “É uma questão de fé e não há como discutir”. Ora, isso me parece mais um artifício para não dar o braço a torcer, mesmo na ausência de argumentos. Por que iniciar a discussão, se no final uma das partes irá reduzir tudo a uma mera questão pessoal? A racionalidade é mantida até certo ponto e, então, é abandonada? Assim, a discussão torna-se uma grande perda de tempo.

Sem interromper o discurso, Alceu escreveu a palavra "fé" em um bloco que estava sobre a mesa, quase que de forma inconsciente.

- O que pode permitir que tomemos decisões quando a razão não é suficiente é a intuição, as preferências, o prazer. Sim, as crenças também influenciam nas decisões pessoais. Mas não me venha colocando todas essas coisas em um pedestal. Não há motivos fortes para supor que tais artifícios venham de algum outro lugar que não seja a própria mente. Imagine se alguém começasse a afirmar que recebeu uma comunicação telepática de uma civilização extraterrestre, dizendo para que deixássemos de utilizar determinados aparelhos eletrônicos, a fim de que alguns representantes alienígenas pudessem intervir em nosso planeta, de modo a evitar a sua destruição. Você aceitaria imediatamente? Arriscaria-se a não acreditar? A sua fé influenciaria neste caso ou terminaria por ser influenciada?

A imagem do apocalipse, seguido pela invasão alienígena, tomou conta da cabeça de Elza. Ela sorriu. O esposo continuou falando ao telefone:

- Quem lhe falou sobre isso? O Pastor Mosé? Um livro muito antigo é, provavelmente, menos confiável do que escritos mais recentes, salvas as exceções, pois há muita coisa boa e muita porcaria, seja no passado ou no presente. Porém, na medida em que o tempo passa, o conhecimento da humanidade a respeito de tudo o que a cerca aumenta, seja devido à quantidade de informações acumuladas, seja devido ao fato de os recursos utilizados em suas investigações evoluírem a cada dia. Portanto, não é nenhum absurdo dizer os textos mais recentes tendem a ser mais válidos que os antigos. E é provável que seja sempre assim: no futuro, possivelmente, teremos escritos mais confiáveis do que aqueles que temos hoje. Aqui estou concentrando-me no aspecto científico, isto é, no conhecimento da humanidade a respeito do universo e da história. Não me refiro a argumentações lógicas. Digo isso porque o que a Bíblia contém não são argumentos, nem lógicos nem ilógicos. Ela não é o tipo de obra que apresenta um raciocínio encadeado e a partir dele retira conclusões. Não. O que ela nos traz são relatos, parábolas e provérbios, geralmente com lições morais nas entrelinhas. Trata-se de escritos de muita relevância histórica, sem dúvida, mas nada que confirme o sobrenatural. É importante destacar também que, mesmo que um argumento só se torne inválido quando surge um outro que o derrube, argumentos mais atuais tendem a estar mais corretos que os antigos. Isso acontece porque argumentos não são descolados da realidade. Eles tratam da realidade. Por isso, argumentos elaborados com menos dados e menos conhecimento sobre o real têm maior probabilidade de estarem incorretos. Eles podem até parecer corretos dentro daquele universo de dados em que foram elaborados, mas, quando são acrescidas novas informações, que não estavam disponíveis na época, o argumento pode cair por terra imediatamente. Sejamos objetivos. Por que acreditar que esses textos que relatam interações entre Deus, entidades celestiais e a humanidade são verdadeiros? Por que aceitar que suas regras e lições são aquelas que devemos seguir? Não diga que é porque as pessoas consideram essas regras as mais coerentes. Afinal, se fosse esse o motivo, a defesa de tais regras seria feita através da apresentação dos motivos que as tornam boas regras, e não pela simples afirmação de que seriam as leis de Deus.

Na sala, a esposa recostou a cabeça e fechou os olhos.

- Não preciso ler mentes nem fazer análises subjetivas para perceber que muitos religiosos aceitam verdades reveladas e apresentam apenas sentimentos e experiências como justificativas para a aceitação, além de utilizarem de forma muito estranha a palavra “fé”. Os próprios religiosos é que me dizem isso. Você, como religioso, pode me dizer: qual é o motivo pelo qual você acredita no que prega sua religião?

Alceu começou a escrever o nome do instituto, mas não se recordava por completo. Instituto... Divino...

- Quando disse que todas essas histórias são transmitidas de geração em geração, minha intenção era destacar que elas são ouvidas na época em que se é mais vulnerável, e justamente da boca daquelas pessoas em quem mais se tem confiança. Não é difícil enxergar aqui um encadeamento responsável por transmitir um mito que, em sua origem, não tem mais sustentação do que tantos outros já criados. Se acho a explicação religiosa simplista? Bom, pelo menos frente ao que conhecemos hoje, a realidade parece ser bem mais complexa e interessante do que aquilo que diz o mito.

Enquanto conversava, Alceu esforçava-se para conseguir lembrar-se do nome da instituição. Divina Luz... Reino...

- Não estou negando o suposto plano sobrenatural. Na verdade, eu nego o nível espiritual da mesma forma que nego a existência de bruxas. O que há por trás disso é mais dúvida e indiferença do que negação. Não preciso ficar negando o improvável a todo momento. Está me dizendo que não existe nenhum argumento contrário? Ora, não existe nenhum argumento forte a favor do plano sobrenatural. Imagina se eu tivesse que levar minha vida como se tudo que não pode ser negado fosse verdade? Teria que acreditar e seguir as regras de todas as maluquices já aventadas pela humanidade. Uma verdadeira insanidade. Como provar que aquilo que se afirma como verdadeiro por fé não é simplesmente resultado de comodismo? Ou de medo? Ou de desejos, anseios e opiniões a respeito da natureza humana? Ou uma simples aceitação de um mito que se ouviu por toda a vida? Ou um apego emocional a esse mito?

Dona Santinha adentrou a sala e perguntou a Elza se já devia servir o jantar. Esta, de olhos fechados, não ouviu a pergunta, pois prestava atenção naquilo que dizia o marido.

- O grande problema das religiões, hoje, é que muitas delas não ficam somente no campo do conforto pessoal, mas querem interferir em decisões políticas e sociais importantes. Não posso aceitar que uma determinada questão seja discutida sob a ótica de dogmas que não conseguem demonstrar sua razão de ser. Se tivéssemos que respeitar qualquer coisa que um indivíduo dissesse, mesmo que o embasamento apresentado fosse frágil, simplesmente pelo fato de ser uma questão de fé, viveríamos no mundo da irracionalidade, onde as decisões seriam tomadas levando-se em conta não o que fosse melhor para as pessoas, e sim parâmetros que não guardam ligação com a realidade.

O lápis rabiscava o papel. Luz Divina... Reino Divino...

- É claro que a limitação da linguagem não deve limitar a percepção da realidade. Podemos, sim, fazer suposições a respeito do sobrenatural e do metafísico, e temos à disposição inúmeros termos para designar o que for necessário. A existência do termo, no entanto, não confere existência ao que ele designa. Você disse que eu estava referindo-me apenas a religiosos simplórios, mas você também ainda não apresentou as bases de sua crença. Por isso, insisto: qual é o motivo pelo qual você acredita no que prega sua religião? Qual é o motivo pelo qual você acredita na existência do Deus bíblico?

Dona Santinha repetiu a pergunta, dessa vez em um tom um pouco mais alto. Elza assustou-se. Dali, ambas podiam ouvir as palavras de Alceu:

- Ciência e religião não interferem entre si? É fato que, em outros tempos, a religião já tentou “explicar” muitas coisas que, após algum tempo, passarem a ser melhor compreendidas pela ciência. Será que esse processo contínuo de substituição da “explicação religiosa” pela científica já terminou? Só se a religião não estiver mais tentando explicar as coisas, porém não é o que ocorre. Luciano, diga-me, por favor, qual é mesmo o nome do instituto?

Elza respondeu positivamente à pergunta de Dona Santinha. Ambas seguiram para a cozinha. Alceu escreveu: "Instituto da Luz do Divino Reino".

- Faz-se necessário ressaltar uma confusão que você está cometendo, não sei de se forma deliberada. Você está misturando discussões lógicas a respeito da criação do universo por um ser superior com alegações sobrenaturais a respeito de um ser fantástico específico: o Deus bíblico. Não há nada de errado em, ao refletir sobre o universo, conjecturar sobre a hipótese de um criador. Isso é filosofia. É cosmovisão. É a base de um provável processo lógico. É o levantamento de hipóteses. Observe que isso não causa grandes revoluções no conhecimento, a não ser que se descubra algo realmente inovador. O indivíduo que conjectura sobre um criador é, provavelmente, indiferente à sua existência. Agora, acreditar que esse criador é o Deus que você adora, que nos fez à sua imagem, que nos ama, que determinou regras para que seguíssemos, que nos observa e nos julga, que ouve nossas súplicas, aí não. Isso já é um grande salto sem sentido de uma discussão lógica para uma simples afirmação sobrenatural. Conclusões precipitadas a respeito da suposta existência de entidades metafísicas acabam por influenciar a vida de quem passa a acreditar e também o destino de outras pessoas, dada a interdependência entre os indivíduos de uma sociedade. Apenas mais um exemplo: é normal conjecturar sobre uma vida após a morte. Já aceitar, sem mais nem menos, que essa suposta continuidade possa dar-se em um lugar agradável ou repugnante e que o critério para a triagem seja o comportamento manifestado em vida, ao invés de outro qualquer, aí já é pura religião, muito pouco diferente de astrologia. Filosofia passa longe.

Anotado em um pequeno pedaço de papel jogado sobre a mesa, estava um lembrete de que, antes do debate, Alceu iria encontrar-se com Bispo João, a quem ainda não conhecia. O encontro havia sido marcado por Padre Messias.

- Ninguém está obrigando-me a aceitar uma crença diretamente, da mesma forma que não estou tentando obrigar ninguém a tornar-se ateu. O que faço, claro, é expor meu posicionamento e, caso alguém concorde, poderá livremente adotá-lo, completa ou parcialmente. No entanto, de modo indireto, as religiões impõem, sim, uma boa parte do que ditam sobre comportamento. Estou falando do grande problema que já mencionei: muitas religiões, hoje, põem-se a interferir em importantes decisões políticas, sociais e legais. Tentam influenciar até mesmo em questões de saúde pública, como quando propõem tratamentos baseados nas crenças que difundem, ou quando tentam atrapalhar importantes pesquisas científicas por causa de dogmas, como no caso das células-tronco. E o que dizer do preconceito contra homossexuais ou da proibição dos métodos contraceptivos, por exemplo? O correto, no momento de se tomar decisões que afetarão muitas pessoas, não é adotar uma visão teísta e nem ateísta, mas uma visão que seja indiferente a essa discussão. Não é o que fazem alguns legisladores. E qual seria a visão ideal? Uma que considerasse as leis do Deus bíblico, de alguma igreja específica, os ensinamentos de algum profeta, as indicações das cartas do tarô, a astrologia, ou uma que considerasse meramente as necessidades dos envolvidos e as informações disponíveis, com o cuidado de não prejudicar nenhum grupo ou, pelo menos, minimizar os impactos necessários? Isso nada tem a ver com considerar que Deus não existe. Trata-se, simplesmente, de considerar o problema e seus impactos. Não nos esqueçamos dos pastores que mantêm boa parte da população sob o controle ou pressão das “leis divinas”, pelos mais diversos interesses, alguns bastante escusos. Acho que vale a pena retomar a suposição que apresentei anteriormente, sobre os extraterrestres que faziam uma comunicação telepática com um ser humano. E se aquele indivíduo fundasse uma seita e alguns de seus integrantes elegessem-se deputados? Você, com certeza, ficaria assustado com as leis que poderiam aprovar com base nas instruções alienígenas. O perigo, ainda pequeno, é que minha suposição não é totalmente ficcional: já existem ordens, como os Filhos da Luz, que difundem a respeito de uma suposta influência de seres extraterrestres em nossas vidas.

Dona Santinha, com a ajuda de Elza, terminou de colocar os alimentos sobre a mesa. Era preciso chamar Alceu, que ainda discutia:

- Isso não é verdade. Não estamos falando de simples diferenças entre duas cosmovisões não provadas. Afinal, você está fazendo sérias considerações a respeito do universo e de um plano sobrenatural e está levando sua vida com base nelas, não sei se de modo honesto ou se apenas para tentar influenciar a vida de outras pessoas. Eu não estou afirmando nada parecido, mas apenas tomando a cautela de duvidar racionalmente de proposições que não podem ser comprovadas, a fim de evitar o equívoco de tomar absurdos por verdades e acabar prejudicando alguém com base nisso. Não estou sequer declarando a inexistência de entidades metafísicas. Não possuo certeza alguma sobre a origem do universo ou sobre a existência ou inexistência dessas entidades. Você, que possui, pode começar a listar os motivos.

Elza surgiu na porta e fez um sinal, com o intuito de avisar sobre a refeição. Alceu tratou de encurtar a conversa:

- Quem está fazendo alegações que ultrapassam a mera discussão sobre hipóteses é você. Eu estou expondo um ponto de vista sem apelar para leis reveladas e afins. O verdadeiro pensamento crítico conduz ao ceticismo racional, que não implica em sair por aí negando tudo, o que seria também um despautério. O conhecimento deve ser constantemente buscado, mas nunca inventado. É assim que sou ateu. Esse é o ateísmo que defendo.

As posições de cada um tinham ficado claras a ambos. O diálogo encerrou-se por ali. Antes de seguir para a mesa na qual estava servida a ceia, Alceu observou no papel o nome do instituto. As iniciais chamaram-lhe a atenção. Instituto da Luz do Divino Reino. Poderiam ter uma sigla: ILuDiR.


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