16 de novembro de 2011

O ateu que encontrou Deus
- Parte VII: Apocalipse (É chegado o fim)


Prólogo - Parte I - Parte II - Parte III - Parte IV - Parte V - Parte VI - Parte VII - Epílogo

- O fato é que, se o “nada” tivesse existido, existiria ainda hoje, já que nada teria surgido dele. - discordou o bispo.

Alceu retrucou:

- Continuo achando muito estranha sua insistência em discorrer sobre o “nada absoluto”, um conceito de apreensão aparentemente fácil, porém difícil de ser aplicado sobre a realidade. O universo pode ser o todo. Pronto. É possível que não faça sentido que se fale em fora dele, antes dele, depois dele. A hipótese que estou apresentando agora se resume a isso: existe o todo, o qual chamamos de universo. O todo possui dimensões espaciais, uma dimensão temporal e, talvez, outras dimensões desconhecidas. Essas dimensões podem ser limitadas. Mas não é preciso supor que haja algo além dos extremos das dimensões. Ou seja, não é necessário conjecturar a respeito de um momento anterior ao todo. A dimensão temporal não deveria ser um empecilho para que se tome o universo como o todo, pois, da mesma forma que as demais dimensões, ela só existiria no universo, isto é, no todo, no que existe. Quando você diz que se o “nada” tivesse existido, existiria ainda hoje, ou que em algum momento teria existido o “nada”, está extrapolando a dimensão temporal do universo para fora dele. Isso talvez não faça muito sentido. Por que insiste em aplicar o conceito de causalidade entre um objeto não natural - Deus - e um objeto que é, simplesmente, toda a natureza?

- Por que existe algo ao invés de nada? - indagou o bispo.

- Não sei. - respondeu Alceu - E sei que você também não sabe, pois não dispomos de meios para obter uma resposta definitiva para este problema. Assumindo que eu não esteja sendo completamente enganado e que não esteja sonhando, posso dizer que sei que o universo existe porque estou inserido nele e consigo captá-lo com meus sentidos. Mas não sabemos por que ele existe. Não sei se o mundo sensível é ilusório ou não. E também não sei se existe ou não o transcendente. Você também não sabe, pois é impossível sabê-lo. O máximo que podemos fazer é formular algumas hipóteses.

- Alceu, creditar a Deus a criação do universo não é uma hipótese, e sim uma necessidade. É probabilisticamente impossível que algo como o universo venha a existir sem que uma mente esteja por trás da criação.

- Então também é probabilisticamente impossível que uma mente complexa, capaz de projetar e criar um universo, simplesmente exista, sem nenhuma explicação. Se uma mente assim pode simplesmente existir, então o universo também pode. Por isso, não há como defender como certa a existência desse ser primordial e absoluto. Se você pode aceitar que um ser assim existe sem ter sido planejado ou criado, então você é obrigado a aceitar que o universo pode existir sem planejamento e sem criação.

- Está dizendo que o universo pode ter surgido por acaso?

- Não é bem isso que estou dizendo, pois não sei o que o bispo pensa sobre o acaso. Mas, se não for apresentada uma explicação para a existência de um criador, também poderíamos dizer que ele existiria por acaso. Isso se assumíssemos sua existência, é claro. Se considerarmos que, no tempo, cada acontecimento é determinado pelos acontecimentos anteriores, veremos que não há lugar para a sorte. Existem modernas teorias científicas que discorrem sobre multiverso, dimensões paralelas e aleatoriedade real, mas não irei considerá-las agora, visto que, além de ainda não haver comprovação suficiente, tais entidades seriam, em princípio, inatingíveis a partir de nosso ponto de vista. Esta é uma fronteira sobre a qual a humanidade ainda pode avançar. Se fôssemos considerar o multiverso, poderíamos imaginar um cenário em que todos os universos possíveis existem, o que eliminaria qualquer alegação a respeito de improbabilidades. Mas podemos ignorar essas teorias por enquanto, sem prejuízo para a compreensão das ideias das quais estamos tratando. Não gosto das expressões “surgimento” ou “criação” em discussões sobre universo, pois elas costumam ser empregadas de modo a assumir que o universo foi criado ou surgiu em algum momento.

- Tudo que começa a existir foi causado. - afirmou Bispo João.

- Mas as causas estão todas no universo. - rebateu o arquiteto - Ao falar do universo inteiro, é diferente.

- Por que deveríamos levar em conta princípios básicos de causalidade para qualquer coisa, menos para o universo? - estranhou o bispo - O problema não é a lacuna no conhecimento. É a lógica!

- Sua afirmação, basicamente, é a de que o universo precisa ter sido causado por algo, pois tudo aquilo com o que lidamos foi causado por alguma coisa. Porém, uma causação do universo seria bem diferente das causações que conhecemos, pois estas são transformações de certas coisas em outras, e todas estariam dentro do universo. Portanto, já teríamos que lidar com algo diferente da causalidade que conhecemos. Seria preciso aceitar que as regras de causação do universo são diferentes das naturais. E, se podemos assumir regras diferentes para o problema da existência do universo, então por que se sente forçado a aplicar a regra da causalidade a este problema? Você está aceitando eliminar outras regras: materialidade, temporalidade, naturalidade, etc. Por que só não aceita eliminar a causalidade? Além disso, sua afirmação acaba não resolvendo o problema, pois, se tudo precisa ter sido causado, então aquilo que causou o universo também precisaria de uma causa.

- Materialidade e temporalidade são leis físicas. Se estou especulando sobre algo além do natural, sou obrigado a abandoná-las. Mas a causalidade é diferente, pois é uma lei lógica, e não apenas física. Posso supor um universo onde as leis físicas sejam diferentes, mas não um onde o resultado de dois mais dois seja diferente de quatro.

- A causalidade é um conceito lógico, mas, como qualquer outro conceito, foi elaborado a partir da observação da realidade. Caso os conceitos não fossem, de algum modo, baseados no real, não teríamos motivos para considerá-los. Se a causalidade fosse logicamente obrigatória, não haveria como escapar de uma regressão infinita, pois o ser superior também precisaria ter sido causado. Se ele pode existir sem causa, a causalidade lógica e obrigatória foi descartada. Para supor Deus, você eliminou a materialidade, a temporalidade, a naturalidade e acabou eliminando também a causalidade, pois o supôs como sendo algo sem causa.

Após uma breve pausa, Alceu continuou:

- Todas as causações físicas que conhecemos são, na verdade, transformações. Perceba que a passagem de tempo, isto é, a mudança de estados, é fundamental para a observação do encadeamento de causas e efeitos. Essa história de causalidade sem realidade não me convence. Causalidade é uma regra que observamos dentro do universo, isto é, onde há tempo. Você conseguiria apresentar um bom exemplo de uma causalidade estritamente lógica, sem nenhuma ligação com o mundo físico e a passagem de tempo? - perguntou Alceu.

- Uma operação matemática, como uma soma, um logaritmo ou uma integral.

- O conceito da soma só existe devido à possibilidade de contar e juntar entes reais. O conceito ainda mais básico de quantidade está estritamente relacionado à contagem de entes ou a medições de intensidade. O mesmo vale para as demais operações básicas e para todo o arcabouço de teoremas daí resultante. Todos eles descrevem a realidade e seus fenômenos físicos.

Bispo João fez uma pergunta:

- Você conhece a definição da palavra “causa”? Onde é que consta que os objetos só podem ser causados a partir de outros pré-existentes?

- Na realidade, bispo! Para chegar a conclusões seguras, devemos partir de observações da realidade e de raciocínios aplicados sobre tais observações, conforme discutimos no início da conversa. Se você constrói um relógio, ele passa a existir, mas seus componentes já existiam antes. A linguagem é um código definido pela humanidade para permitir a comunicação, mas as definições do código não servem como provas definitivas sobre fatos concretos, e sim como instrumento de comunicação de tais provas.

- Mas, e a lógica? O universo não pode ter criado a si mesmo, pois isso seria um paradoxo.

- E quando foi que eu disse que o universo teria criado a si mesmo? E o criador? Ele também teria criado si mesmo? Todas as regras lógicas e matemáticas, mesmo aquelas que aparentemente se sustentam sem a realidade física, foram elaboradas ou descobertas pelo homem a partir da observação da realidade. Os seres humanos só pensaram nos números porque tinham entes reais para contar. Quando somamos duas quantidades, estamos fazendo uma representação de algo que ocorre no mundo físico. E as complexas equações, leis e regras matemáticas que hoje conhecemos foram sendo desenvolvidas sobre essa base. A causalidade também foi inicialmente observada empiricamente: os homens a perceberam através da passagem do tempo. A lógica e a matemática são algumas das ferramentas desenvolvidas pela humanidade para compreender a natureza. Mas não existem paradoxos na natureza. Os paradoxos surgem apenas quando você tenta usar essas ferramentas sem aplicá-las sobre a base a partir da qual surgiram, isto é, a realidade. Numa lógica sem realidade, você pode dizer que uma reta pode ser infinitamente dividida, pois podemos dividi-la ao meio, e cada metade também pode ser dividida, e assim por diante. No mundo real, no entanto, isso não acontece.

- Alceu, se uma explicação sobre algo é suficiente, não é preciso fornecer uma explicação sobre a explicação. Se o ato de Deus explica e é necessário para a criação do universo, não é preciso provar nada sobre ele. Mas é necessário que ele não tenha sido causado, para que não haja a regressão infinita.

- E esse raciocínio simplista lhe dá a certeza de que existe um Deus pessoal a ser respeitado? Bispo, uma explicação só é válida se resolver o problema ou, pelo menos, permitir um aprofundamento do estudo! Um universo que existe independente de qualquer outra coisa também evita que haja regressão infinita. Além disso, seu comentário deu a entender que, se há uma explicação suficiente, não há motivos para ficar confabulando a respeito de explicações mais complexas e intangíveis.

- Sim, com isso eu concordo. - o bispo confirmou.

- Pois então! - retomou Alceu - Um criador pessoal e inteligente, que existe sem maiores explicações, está bem mais distante da realidade do que um universo que existe sem maiores explicações. É bem mais aceitável supor um universo que simplesmente existe do que supor um criador que simplesmente existe e que foi capaz de projetar e criar o universo. O criador é desnecessário. Ao invés de postular um ser fantástico, imaterial, atemporal, não natural, diferente de tudo o que podemos perceber na realidade, e que simplesmente existe, sem maiores explicações, você pode postular um universo fantástico, real, que está bem diante de seus olhos, e que simplesmente existe, tal qual o suposto criador. E nem precisamos lidar com imaterialidade, atemporalidade, nem com um ser que cria ou organiza matéria e tempo num passe de mágica. Ficamos apenas com conceitos que observamos na realidade. Não estou dizendo que dominamos ou que temos conhecimento total da realidade e nem que teremos esse conhecimento algum dia, e sim que é impossível afirmar com certeza que existe um criador.

- Como pode ter tanta certeza a respeito de suas afirmações?

- Não tenho certeza, bispo. Você sabe que o que proponho é que não se tome como verdade aquilo que não pode ser comprovado. Estou apenas apresentando hipóteses. O que peço ao bispo é que não abandone os princípios com os quais concordamos. Estamos alinhados sobre o espaço-tempo ser uma característica do universo. E tempo e espaço estão intrinsecamente relacionados, de acordo com a teoria da relatividade. Você pode até supor a existência de tempo antes do Big Bang, mas não pode ter certeza alguma sobre isso.

- Algo temporal e limitado não pode ser o todo.

- Para que algo seja o todo, não é necessário que seja infinito. - argumentou Alceu - Para que um objeto seja o todo, basta que ele seja tudo o que existe, ou seja, basta que não exista nada além dele.

- Como o universo veio à existência? - questionou Bispo João.

- Em termos temporais, pode ser que o universo não tenha vindo à existência. Se não há um tempo absoluto e externo, então não há uma linha temporal na qual o universo não existia e depois passou a existir. - respondeu Alceu - Talvez não haja espaço fora do universo. Logo, ele não ocuparia um espaço externo enquanto se expande. E seria uma insanidade a tentativa de determinar a localização do universo, visto que não haveria um espaço no qual localizá-lo. Do mesmo modo que pode não haver um espaço externo, também pode não existir um tempo externo. Os dois tipos de limitação são muito parecidos. Perguntar “onde está o universo?” seria tão absurdo quanto perguntar “o que aconteceu dez minutos antes do início do universo?” ou “quando o universo começou?”. Você pode até pensar que a última pergunta faça sentido. Afinal, dentro do universo, podemos tomar como referencial um momento próximo ao Big Bang, compará-lo com o momento presente e dizer que ele começou há cerca de quatorze bilhões de anos. Mas é um referencial interno, como não poderia deixar de ser. Todas as referências espaciais que você faz utilizam pontos do universo. Você diz, por exemplo, que aquele vaso está a dez metros de distância daquela cadeira. - articulou Alceu, apontando para um vaso no canto da sala - Você nunca tenta referenciar um ponto espacial fora do universo. Com o tempo é a mesma coisa: todos os referenciais estariam no universo. Dizemos, por exemplo, que determinada apresentação terminou há uma hora. Não há como haver transição de “sem tempo” para “com tempo”, por um motivo muito simples: uma transição é um evento temporal e, portanto, necessita de tempo antes e depois dela. Na verdade, para haver transição, é preciso que haja antes e depois. Só que, neste caso, aparentemente, não há antes. Em que tempo a dimensão temporal não existia, se ela é o próprio tempo?

- Alceu, você está dizendo que todos os eventos, passados e futuros, estão sempre presentes? Por que, então, eu tenho a impressão de que estamos exatamente neste momento do tempo, no qual estamos discutindo nesta sala?

- Bispo, eu não disse isso. Pense da seguinte maneira: não são os momentos que estão sempre presentes, e sim a dimensão temporal. Para facilitar, ignoremos, por ora, as deformações do espaço-tempo. A matéria contida no universo pode deslocar-se através das dimensões espaciais em diferentes sentidos, mas se desloca em um único sentido na dimensão temporal. Sua consciência está percebendo o presente momento devido à sua localização ao longo de cada uma das dimensões espaciais e da dimensão temporal.

O bispo franziu a testa, mas Alceu prosseguiu:

- Pense no universo por inteiro. Os objetos contidos nele não são criados e nem surgem. O que temos, na verdade, é a matéria e a energia em constante transformação e movimentação. Ao invés de considerar cada objeto individualmente, considere o maior objeto de todos: o próprio universo. Com base nisso, perceba que é inválida a conclusão de que todo objeto precisa ter sido causado, pois ela é resultado de uma observação parcial e incompleta do todo. Por que o único objeto que conhecemos precisa ter sido criado por um outro objeto? Não conhecemos nenhum exemplo real de criação! Há apenas transformação!

Após uns poucos segundos de reflexão, o bispo perguntou:

- O que estou defendendo é tão ilógico?

- É um tanto ilógico, pois não conhecemos nada na natureza que se pareça com isso. Mas o mais importante é que é desnecessário. - respondeu Alceu.

- Alceu, começo a compreender seu raciocínio. Mas a hipótese do criador também é válida, não é?

- Você quer supor um ser inteligente, dotado de intenções, que vive além da natureza, imaterial, mas capaz de gerar matéria, atemporal, mas capaz de criar tempo, que define regras para que sigamos e que se preocupa com o que fazemos? Tudo bem, tudo bem. Mas quer mesmo levar essa suposição tão a sério e viver como se este ser fantástico, saído de suas conclusões, realmente estivesse lá, com sua natureza diferente de tudo o que conhecemos? Não vê absurdos em nenhum detalhe dessa suposição tão alheia à realidade? Considere algumas perguntas. Por que Deus teria definido regras? Por algum capricho? No fim das contas, que diferença há entre criar um universo e ditar regras para seus habitantes e não criar universo algum? Tem me parecido loucura você dizer que leva a sério a suposta existência de um ser superior baseado em raciocínios sobre conceitos tão abstratos. Esforço-me para achar essa hipótese ao menos razoável. Por isso, espanto-me quando você dá a entender que a toma como verdadeira. O bispo sabe que pode estar errado. E eu sei que posso não estar certo. Mas perceba que muitas pessoas usam conclusões não definitivas sobre uma suposta realidade sobrenatural para defender preconceitos e tentar limitar a vida alheia.

- Não tomo os conceitos que defendo como verdade absoluta, mas considero-os plausíveis. - justificou-se o bispo.

- Sinto-me na obrigação de ressaltar que estamos aqui nos referindo à realidade, porém limitados pela linguagem e pela incapacidade de apreensão completa de certos conceitos. Falamos com aparente facilidade a respeito de considerações um tanto alusivas, mas sabemos bem que isso resulta, no máximo, em um tipo de representação, que nos permite pensar sobre tudo o que nos cerca, porém está longe de nos fornecer certezas. Neste momento, estou apelando para a sanidade. Em momento algum você afirmou ter certeza de que está com a razão, e exatamente por isso considero-lhe um bom debatedor, principalmente se levarmos em consideração a natureza do presente diálogo. Não nos esqueçamos de que estamos discutindo um assunto que extrapola o conhecimento de toda a humanidade. Com criatividade e bons conhecimentos de lógica e ciência, podemos formular dezenas de hipóteses para o problema da existência do universo. No entanto, não há meios para testar e comprovar nenhuma delas. Aceito bem quando você diz que considera sua hipótese plausível. Mas se você dissesse que essa hipótese está mais próxima à realidade do que qualquer outra, então eu ficaria um pouco assustado, pois está supondo coisas pouco concretas, sem apresentar um embasamento suficientemente forte.

- De fato, o tema é de difícil apreensão, mas as hipóteses devem ser formuladas e sua plausibilidade discutida. O objetivo não é encerrar a questão, e sim identificar o que pode ser verdadeiro e o que é falso.

- Bispo, não acho apenas difícil chegar a conclusões confiáveis com base em uma lógica que abarque conceitos abstratos e metafísicos. Acho impossível. Isso não significa que vou parar de investigar e de incentivar a evolução do conhecimento. É claro que existem muitas coisas fascinantes e desconhecidas. Mas devemos ter consciência de que estamos raciocinando sobre abstrações. Levando ao extremo, arrisco-me a afirmar que, mesmo que alguém apresentasse uma argumentação lógica consistente a favor da existência de um ser superior, ainda assim seria seguro manter uma dose de dúvida, pois as regras e conceitos lógicos são elaborados a partir de nossa observação e conhecimento limitados. E isso vale para todas as demais conclusões. A lógica, tal qual a definimos e utilizamos, e que considero essencial, nasceu de uma estrutura físico-química limitada, o nosso cérebro, que está estruturado mais para permitir a sobrevivência do que o perfeito entendimento do todo. As limitações desse tipo de estratégia tornam-se ainda mais evidentes quando nos damos conta de que, além de simples regras lógicas, estamos lidando com conceitos representativos. Neste problema, estamos muito distantes de uma argumentação capaz de eliminar todas as demais alternativas.

- Conversas como essa servem, particularmente, para colocar minhas crenças à prova, aferi-las, aprimorá-las, substituí-las ou rejeitá-las. - disse o bispo - Busco discutir à exaustão para equacionar os pontos divergentes.

- Entendo e concordo. - sinalizou Alceu - Independente das classificações da lógica clássica, distingo, grosso modo, dois tipos de lógica. Um mais exato, atrelado à matemática ou aplicado sobre eventos bem conhecidos, com o qual tive algum contato durante minha formação em arquitetura. É o que costumam chamar de lógica formal. O outro tipo é mais humano, mais representativo. Com esse tipo tomei contato em minha pós-graduação em áreas da filosofia. Ele inclui abstrações como estas que estamos utilizando. Está mais próximo do que chamam de lógica filosófica ou epistêmica. É este segundo tipo que estamos utilizando aqui.

Naquele exato momento, os dois ouviram alguns sons vindos do lado de fora da sala. Parecia que o assistente estava limpando o piso. Alceu prosseguiu:

- Lógica, filosofia, teologia, história, ciências em geral... Todas as disciplinas servem para organizar o conhecimento acumulado pela humanidade. Mas nenhuma delas é independente da observação e do estudo da realidade. A filosofia surgiu dessa observação e das dúvidas por ela suscitadas. As bases da ciência estão na filosofia. E esta se transforma no decorrer no tempo, justamente porque o conhecimento da humanidade também se transforma, pois se torna cada vez maior, graças às ciências e sua contínua observação e estudo da realidade. Sempre ouço alguém a dizer que o problema da existência de Deus cabe à filosofia ou à teologia, e não à ciência, mas isso é de uma estupidez tremenda, pois todas as disciplinas do conhecimento são indissociáveis e partem da mesma base, que é a realidade. Geologia, matemática, astronomia, química, enfim... Todas têm seus microscópios, telescópios e olhares apontados para a realidade. A única diferença é que cada uma delas procura focalizar uma porção do todo, mas com sobreposições e interseções enormes. Nenhum aspecto da realidade está fora do escopo da ciência. É claro que ela não consegue alcançar tudo o que há para ser conhecido, mas é seu objetivo conseguir. Suposições como essas das quais tratamos podem até servir de base para um processo de investigação e descoberta, desde que combinadas a métodos mais razoáveis e criteriosos. Afinal, elas se encontram em um campo mais especulativo do que propriamente científico. Para não ser mal interpretado, registro que a lógica, enquanto parte essencial da ciência, é um instrumento indispensável à construção do conhecimento e ao desenvolvimento da tecnologia. E é claro que existem inúmeros fenômenos fantásticos ainda não compreendidos pelo homem. Experiências não devem ser descartadas ou relegadas à insignificância apenas porque ainda não puderam ser estudadas ou avaliadas com a devida profundidade. Talvez nem tudo possa ser colocado algum dia nos moldes de nossas atuais metodologias. O tempo nos dirá. Porém, quando você coloca objetos atemporais e imateriais em sua argumentação, está utilizando recursos que lhe permitem, em tese, resolver absurdos e paradoxos, mas mesmo estes dois últimos são conceitos elaborados por humanos, e nada disso atesta a existência de entidades além do escopo no qual somos capazes de atuar. A simples suposição de algo além da natureza, não físico, é um grande passo no desconhecido. Quando estamos fazendo suposições sobre o que não conhecemos, podemos até apresentar hipóteses alternativas entre si, porém sem contradições e paradoxos aparentes. Afinal, formular hipóteses sobre o desconhecido não o torna conhecido.

- Compreendo, compreendo. Mas não posso deixar de notar que minha vida é um verdadeiro milagre. - observou o bispo - Nasci em meio ao caos e trilhei caminhos tortuosos até a juventude. Tinha tudo para dar errado. Por isso, reconheço a presença de uma força maior em minha vida.

- O bispo já deve ser capaz de intuir minha opinião a respeito desse assunto. Sabemos bem que coisas boas e ruins acontecem às pessoas, por mérito delas ou devido a fatores externos. Algumas têm mais sorte do que outras, é claro, pois não há nada para dividir o bom e o ruim de modo igualitário entre todos. Se a sorte fosse igualmente distribuída, aí sim teríamos motivos para suspeitar da existência de um ser organizador. - ponderou Alceu - Olhe ao redor. As leis físicas não são desrespeitadas e cada acontecimento parece ser determinado por aquilo que ocorreu anteriormente. O bispo deveria orgulhar-se de ter conseguido mudar os rumos da própria vida. E deveria também reconhecer os seus méritos.

- Alceu, creio que consegui captar bem o seu ponto de vista, mas farei mais algumas poucas perguntas antes de encerrarmos esta discussão. O que você me diz a respeito das consequências de viver sem crer em Deus?

- Bispo João, se quiser defender o teísmo com base nos benefícios que podem advir da crença ou como forma de controle social, fique à vontade, mas ressaltemos que seria uma discussão completamente distinta. Aqui estamos discutindo a respeito da existência de Deus. O interesse é concluir se ele existe e se há como chegar a alguma certeza.

- Você deseja que todos se tornem ateus?

- Gostaria que a humanidade fosse mais tolerante, mais criteriosa em sua busca pela verdade e que respeitasse mais a individualidade de cada ser humano. É claro que, pessoalmente, não tenho nada contra os teístas. Parece-me, infelizmente, que muitas pessoas só fazem boas ações sob influência das religiões. Se você deseja manter a crença em um ser não natural que possui inteligência e intenções, eu irei achar estranho, mas é um direito seu. Se você disser que esse ser nos ama, nos observa e nos julga, com base em regras definidas por ele mesmo, irei achar ainda mais estranho, mas é seu direito também. Agora, se você passar a discriminar ou tentar limitar a vida de outras pessoas com base nessas crenças, isto é, com base em suposições a respeito das quais não podemos ter certeza, aí eu ficarei preocupado. Sim, é isso que me incomoda: a falta de respeito por aqueles que pensam e agem de modo diferente.

- Você tem bons argumentos, Alceu, mas ainda não consigo aceitar a totalidade desse pensamento.

- Sua relutância não me surpreende, bispo. Afinal, estamos lidando com as crenças de toda uma vida. Espero que possamos conversar mais vezes.

Bispo João conduziu Alceu até a porta da sala. Assim que ela foi aberta, pôde-se ver o assistente a limpar o piso, próximo à escada que levava ao saguão. Despediram-se e, dali, Alceu seguiu sozinho. O bispo estava pensativo, com uma das mãos apoiada sobre a maçaneta. Mas sua atenção foi repentinamente atraída por ruídos vindos da escada. Alceu havia rolado doze degraus abaixo, após deslizar acidentalmente no piso escorregadio. O assistente desceu correndo. O bispo foi logo atrás.

O corpo de Alceu estava inerte no chão. Uma mancha vermelha formou-se no carpete, sob sua cabeça.


Um comentário:

  1. Está cada vez melhor! Só agora percebi que o conto já foi concluído. Vamos ansiosamente para o epílogo. Será que o Alceu vai se converter e o Bispo virar ateu? Fiquei com medo. :)

    ResponderExcluir