9 de janeiro de 2012

Epílogo
- No qual Alceu, finalmente, encontra Deus (ou se dá conta de que já o havia encontrado)


Prólogo - Parte I - Parte II - Parte III - Parte IV - Parte V - Parte VI - Parte VII - Epílogo

Escuridão completa. Alceu não podia enxergar absolutamente nada. Nada sentia. Frio, calor, conforto, incômodo. Nada. Também nada ouvia. Era como se a única coisa existente fossem seus pensamentos. Não sabia o que fazer para restabelecer a normalidade. A situação parecia estender-se por dias. Não conseguia ter uma boa noção do tempo. Aflito, pôs-se a refletir. Tudo aquilo de que se lembrava teria realmente acontecido em algum momento? A conversa com o bispo, a escada e mais nada...

Um pequeno ponto de luz pareceu piscar ao longe. Não estava certo do que tinha avistado. Em dado momento, a sensação repetiu-se, porém era como se uma voz lhe falasse. Não sabia se realmente tinha ouvido algo ou se era o próprio pensamento. Tanto que não conseguia identificar se tinha sido um som grave ou agudo, belo ou perturbador. Parecia mesmo a consciência a manifestar-se. A voz, então, repetiu a mensagem, mas esta não era linear. Era mais como um fluxo de ideias, ora sequenciais, outrora sobrepostas.

- Grande erro... Encontro marcado...

A impressão era a de que o pensamento estava fora de controle. As palavras e expressões insistiam:

- Encontro... Deus...

Enfim, Alceu manifestou-se, mas não podia falar, pois era como se não tivesse corpo. A resposta também fluía na forma de pensamentos, com certa de dificuldade no início:

- Os humanos... Eles encontraram inúmeras evidências de um processo que, após bilhões de anos, resultou no surgimento de incontáveis espécies de seres vivos. Evolução... A seleção natural como principal mecanismo... O cérebro humano, com sua capacidade de raciocínio e consciência, é resultado desse longo processo. O processo... São tantas evidências... É fato...

As ideias iam organizando-se de modo difícil, mas ele ia acostumando-se lentamente à situação.

- A sobrevivência dos seres mais aptos e a consequente transmissão de seu material genético aos descendentes, de acordo com suas características e as condições ambientais, não é uma simples sequência de improbabilidades. Mutações no decorrer de longos períodos de tempo... Isoladas não levariam a grandes coisas, mas submetidas a um processo natural de seleção, baseado na sobrevivência e reprodução dos seres mais adaptados ao ambiente, entre outros fatores, culminaram em tantas formas de vida... Esse processo não precisa ter sido direcionado, mas não é uma mera série de eventos independentes. Afinal, cada mutação ocorre em um cenário diferente do anterior, com cada vez mais informação acumulada nos genes. Trata-se de um encadeamento indissociável. É bem provável que algo semelhante aconteça sempre que tivermos estruturas autorreplicantes, com capacidade de produzir cópias de si mesmas, eventualmente imperfeitas, em um cenário que favoreça a sobrevivência e a reprodução daquelas que possuírem determinadas características. Isso significa que a única forma de mente racional e consciente que conhecemos, como a que habita o cérebro de cada ser humano, é consequência desse processo. Para aceitar a existência de Deus, é preciso lidar com a ideia de que existe uma mente racional primordial, semelhante às mentes humanas, mas que independe do único processo capaz de produzir mentes que conhecemos. É uma ideia realmente difícil, pois parece que as mentes são resultado de um processo complexo, extremamente demorado e, acima de tudo, natural. Como poderia uma mente com características semelhantes e até mais poderosa existir antes desse processo, independente dele?

A voz continuou:

- A alma... Os humanos... A alma...

Ao que Alceu rebateu, organizando ideias:

- Não, não há lugar para a alma. Cada animal é da mesma espécie que seus pais. A evolução se dá lentamente... Só é possível perceber grandes transformações em longos períodos de tempo. Como determinar quem foi o primeiro homem? Qual teria sido o primeiro animal a nascer com alma? Deus teria decidido injetar almas na espécie humana em algum momento? Onde estavam as almas antes do aparecimento da vida?

==##==

Em um auditório quase lotado, no qual estavam presentes professores, estudantes e visitantes, o evento transcorria normalmente. A maioria do público demonstrava grande interesse pelo debate entre os convidados. Alceu acabara de levantar-se de sua cadeira e dirigir-se ao púlpito.

- Acredita-se que a alma represente a essência de cada indivíduo e que ela seja responsável, inclusive, por sua personalidade. No entanto, é bem possível que isso não seja verdade. As memórias, as opiniões, os sentimentos, enfim, a personalidade, parecem ser reflexos da estrutura cerebral e suas complexas reações químicas. O que chamam de alma não deve existir de verdade, mas apenas como um conceito, uma representação do que há de essencial em cada sujeito. Conhecemos vários casos de pessoas que se envolveram em acidentes ou desenvolveram doenças que afetaram o cérebro. Em muitos desses casos, a personalidade da vítima alterou-se drasticamente. As preferências e o comportamento mudaram. Memórias foram perdidas. Os familiares viam-se diante de uma pessoa rude, mas que costumava ser dócil, ou vice-versa. Que passou a odiar coisas que antes amava. Temos também os medicamentos, que ajudam tanta gente a enfrentar momentos difíceis, de ansiedade ou tristeza, através da interferência na química cerebral. Remédios que podem auxiliar na manutenção de estados de tranquilidade para aqueles que atravessam períodos turbulentos. E não nos esqueçamos dos efeitos de algumas substâncias ilícitas, um misto de euforia e depressão, utilizados como válvula de escape por boa parcela da população. Em todos esses casos, o cérebro é a chave.

==##==

- O sentido da vida... - disse a voz da escuridão.

Alceu refletiu, como se respondesse à provocação, a partir daquela espécie de limbo em que se encontrava:

- É verdade... Se a vida não é obra de um criador, provavelmente não possui um sentido objetivo... Um sentido absoluto... Mas qual é o problema? Não existe nada que determine que algum sentido intrínseco deva existir. Cada um pode dar à própria vida o sentido que bem entender. Mais de um sentido, aliás. E, se achar que escolheu o sentido errado, pode mudar e escolher outro.

- A vida...

- A vida é, primordialmente, uma consequência que temos o direito e, em minha opinião, o dever de desfrutar.

- O sentido da vida... - repetiu a voz.

- O sentido da vida é para frente... - pensou Alceu - Para frente...

==##==

Na plateia, a esposa Elza, os irmãos Caio e Ricardo.

- Os supostos milagres cujos relatos conhecemos costumam estar distantes, temporal e geograficamente. - proferia o arquiteto - Não há nenhum caso bem documentado de alguma ocorrência que tenha desrespeitado as leis da física. Cânceres são controlados. Acidentes têm sobreviventes. São coisas que acontecem. Acontecem a religiosos e a ateus. Mas vamos assumir, por um momento, que milagres, isto é, acontecimentos realmente extraordinários e inexplicáveis, aconteçam. Na verdade, eles acontecem mesmo, pois não temos resposta para tudo. Um grande erro dos teístas está em atribuir automaticamente esses acontecimentos a um ser superior que teria criado o universo. Por que fazem isso? Por que dão esse salto ilógico e injustificado? Se você não conhece a causa de algum evento, isso significa que é obra de Deus? Não seria melhor se você simplesmente admitisse que desconhece as causas? Se você nem conseguiu provar que esse ser existe, então não pode atribuir feitos a ele e ainda querer que todos aceitem. É importante questionar também a postura de atribuir o que acontece de bom a Deus e o que acontece de ruim ao acaso, infelizes coincidências, o demônio ou ao mistério divino, que não poderia ser conhecido pelos humanos, mas que conduziria a humanidade pelo melhor caminho possível. Ora, ora! Ateus e religiosos podem salvar-se de acidentes. E, apesar de parecer que, em alguns casos, as orações surtem efeito sobre os enfermos, o fato é que em tantos outros isso simplesmente não acontece. O efeito placebo é velho conhecido da ciência, obrigatoriamente empregado nos testes de medicamentos. E é bem provável que não exista essa bobagem que tanto repetem, a respeito de um momento predeterminado para a morte. A não ser que estejamos falando de algo natural, tal qual costumo dizer, de modo superficial: qualquer incidente parece ter sido determinado pelos acontecimentos anteriores. Como não se pode mudar o passado e não se conhece tudo o que ocorre ou ocorrerá no universo, então estamos diante de inúmeros incidentes inevitáveis. Se uma pessoa envolve-se em algum tipo de acidente, o que determinará sua sobrevivência são os detalhes físicos do imprevisto: o amortecimento por algum obstáculo, a velocidade, a altura em que se encontrava, as partes do corpo atingidas, entre outros, todos determinados pelas circunstâncias do próprio acidente e por fatos ocorridos anteriormente.

==##==

No corredor do hospital, o médico dizia a Elza:

- Ele está inconsciente, pode ficar assim por semanas, mas há chances de recuperação.

Lágrimas desciam pelo rosto da mulher.

- No estado atual, ele pode ter alguns sonhos. Não é possível determinar se haverá perda de memória. - concluiu o profissional.

==##==

Um dos debatedores perguntou a Alceu:

- E se o criador for dotado de energias? E se você estiver errado ao considerar que não existe tempo fora do universo? Deus pode ter organizado um estado de caos que existia anteriormente.

O mediador autorizou a resposta, que veio após um gole de água:

- E se a matéria estivesse congelada em um estado de eterno presente? E se Deus for uma inteligência embutida no próprio universo? E se ele não precisar do tempo? E se... E se? Você está apenas esforçando-se para acreditar! Está fazendo o máximo para adaptar sua teoria às contestações que vão surgindo, a fim de conseguir continuar acreditando! Até quando agirá desse modo? Essas suposições não são suficientes para validar e comprovar uma ideia. O fato é que não há evidências que nos permitam ter certeza a respeito da existência de um ser superior! E, como a existência desse ser está longe de ser evidente, a única postura aceitável nesta questão é a dúvida e a contínua investigação. Aproveito para pedir-lhe que reflita sobre as perguntas que fez. Procure por mais informações a respeito da relação entre matéria, energia, espaço e tempo.

Travou-se uma breve discussão.

- Já que está falando sobre ciência, responda-me: você não percebe que a teoria evolucionista entre em choque com a Segunda Lei da Termodinâmica? Em sistemas fechados, toda a energia se degrada até que seja atingido um estado desordenado, chamado de “morte térmica”. Frente a isso, como o sistema evolutivo pôde produzir formas ordenadas de vida?

Mais um gole de água e, em seguida, a resposta:

- O planeta Terra não é um sistema isolado. Ele faz parte de um sistema maior, o sistema solar, que, por sua vez, integra algo ainda maior, o universo. Todos esses sistemas caminham para a “morte térmica”, inclusive o universo em sua totalidade, mas, enquanto esse momento não chega, ocorrem trocas de energia entre os sistemas. Desde sua formação, nosso planeta e seus sistemas naturais possuem uma fonte constante de energia: o sol. Trata-se de uma fonte esgotável, e seu fim representará, muito provavelmente, a morte de todos os sistemas que dela dependem.

==##==

Em meio ao nada, a misteriosa voz continuava a desafiar:

- Ainda ousa negar minha existência?

Pensamentos fluíam como resposta:

- O ateu cético não nega diretamente a existência de Deus, e sim a crença cega em sua existência. Portanto, o que o ateísmo nega é a afirmação do teísmo. Ele vê o teísta a afirmar que existe um ser superior, baseado em uma fraca argumentação, sem apresentar evidências suficientes. Então, ele contesta... Por quê? Não posso manter essa mesma crença... Não consigo... Não há motivos, a não ser uma questionável tentativa de me enganar!

==##==

Um espaço para perguntas foi aberto antes do intervalo. Da plateia, um dos estudantes dirigiu uma interrogação a Alceu, a respeito de um sentimento pessoal que lhe daria a certeza da existência de divindades. Ele respondeu:

- Você fala como se possuísse um sentido extra que os céticos não possuiriam, o qual chama de “fé”, que lhe permitiria perceber um mundo espiritual. Em primeiro lugar, devo perguntar-lhe: como você pode ter certeza de que sua percepção do mundo espiritual é confiável? Sabemos que as percepções do mundo físico estão longe de serem dignas de confiança irrestrita. Mas irei considerar que você esteja falando a verdade, isto é, que realmente acredite no que disse. É claro que não conseguirá demonstrar nada a esse respeito. Da minha parte, tenho o direito de duvidar. Por experiência, sei que até mesmo outros teístas estranhariam sua afirmação. Não entendo por que um criador faria com que algumas de suas criaturas fossem privadas desse sentido. E continuo achando que “fé”, no sentido religioso, é uma palavra que designa a crença de que algo é verdade, mesmo que não haja provas suficientes ou mecanismos de verificação. O importante, no entanto, é que, se você não usar esse “sentido extra” para cometer abusos contra outras pessoas ou para tentar interferir em suas vidas contra a vontade delas, tudo bem. O máximo que me permito fazer é dizer-lhe: seja feliz com sua fé! Seria muito bom se tivéssemos um pouco mais de tempo, para que você nos explicasse melhor o funcionamento de seu sexto sentido e o modo como as informações são captadas. Será que tudo o que você ouviu na igreja ou leu na Bíblia não acabou por influenciar sua percepção? Por que as pessoas de outras partes do planeta ou de outras denominações religiosas, que afirmam possuir esse mesmo tipo de sentido, percebem mundos espirituais diferentes daquele que você capta?

==##==

Elza, Ricardo e o pai aguardavam emocionados no saguão do hospital. A mãe falecera seis anos antes. Quando Caio surgiu, trazendo Alceu em uma cadeira de rodas, a esposa não se conteve. Correu até o marido e deu-lhe um forte abraço, aos prantos. Ricardo e o pai sorriram, entusiasmados. Em seguida, pouco antes de entrarem no automóvel, Caio aconselhou Alceu:

- Estamos muito felizes em tê-lo de volta. A situação é um tanto delicada, mas, segundo os prognósticos médicos, há chances de que você se recupere bem. Procure evitar os excessos. Devemos ficar todos atentos a qualquer sinal de alteração.

==##==

Quanto mais tempo permanecia naquela situação, mais parecia que a estranha voz e os próprios pensamentos iam fundindo-se em uma única linha de raciocínio.

- O mais importante é definir o que é Deus... É perigoso tratar desse conceito sem antes defini-lo com objetividade...

As ideias não paravam de fluir.

- Alguns dizem que Deus é uma espécie de força maior que regula as leis do universo. Outros afirmam que ele é um ser inteligente, capaz de observar os seres humanos e até de intervir por eles. E há uma gama enorme de definições diferentes. Entretanto, o uso de uma mesma palavra para tratar de conceitos tão distintos gera grande confusão. Muitos tentam demonstrar a necessidade da existência de um ser criador ou organizador e acham que, desse modo, já estariam automaticamente demonstrando a existência do deus da mitologia cristã ou de qualquer outra mitologia específica. Por isso, todos aqueles que pretendem referir-se a um mistério universal deveriam evitar a utilização da palavra “Deus”, a fim de produzir uma exposição de ideias mais honesta, sem nenhuma apelação para tentativas de convencimento através de mal entendidos.

==##==

Elza ainda estava impressionada com a recuperação do marido. O ocorrido sempre lhe voltava à mente, enquanto o observava sobre o palco.

- Passei por uma experiência de quase morte recentemente. Lembro-me de túneis, luzes, da sensação de estar fora do corpo e até de um encontro com uma consciência superior em um cenário de total escuridão.

Risos na plateia e entre alguns dos debatedores.

- É fascinante, mas não nos deixemos enganar. Experimentos já indicaram que características do próprio mecanismo de funcionamento cerebral são as prováveis causas desse tipo de visão. As pesquisas do neurologista Kevin Nelson, da Universidade de Kentucky, por exemplo, apontam para o sonho lúcido e os estágios do sono como os grandes responsáveis pelas semelhanças entre os relatos de diferentes pessoas. Os túneis iluminados seriam resultado da diminuição do fluxo sanguíneo para os olhos. Já a sensação de estar fora do corpo deve ser consequência de uma espécie de desligamento da região cerebral responsável pela percepção espacial. Já é sabido que a baixa atividade nesta região provoca esse tipo de percepção.

==##==

Alceu não mais sabia quando as ideias eram suas ou do ser oculto que com ele dialogava.

- Muitos teístas esforçam-se para diferenciar Deus de outras figuras míticas, como as fadas e os unicórnios. Argumentam que o primeiro é resultado de uma conclusão lógica a respeito de um criador necessário, enquanto os demais seriam apenas lendas mundanas surgidas a partir da grande imaginação dos seres humanos. Acontece que dois pontos simples eliminam essa diferenciação e jogam Deus, sim, no mesmo nível dos demais mitos. O primeiro ponto é o fato de que a ideia de Deus está longe de ser evidente. Já demonstrei em mais de uma ocasião que a conclusão dos teístas, além de não ser óbvia, não é certa, não é incontestável. O outro ponto se revela quando vemos os teístas defendendo uma narração mitológica mais completa, composta por descrições do processo de criação do universo, passando por interações entre divindades e humanos, chegando à conhecida passagem sobre o criador que envia o próprio filho para salvar a humanidade de seus pecados, sem a mínima argumentação lógica, mas com base, unicamente, em escritos considerados sagrados. Após passar por esses dois filtros, Deus não é mais tão diferente de outras criações humanas.

==##==

Do púlpito, Alceu polemizava. As reações do público eram das mais diversas.

- A própria existência de tantas religiões depõe contra todas elas, apesar da negação de muitos teístas. Para encontrar falhas em cada mito religioso, basta procurar por aquilo que os seguidores de outras religiões têm a dizer sobre ele.

Risos e sinais de reprovação.

- Se você segue fervorosamente uma religião, saiba que os adeptos de outras tantas seitas espalhadas pelo mundo também consideram possuir motivos profundos a embasar suas crenças, assim como você. E isso inclui o espiritismo, apesar de alguns de seus seguidores o defenderem como sendo uma doutrina, e não uma religião. Ora, o espiritismo também possui seus mitos, que estão na própria descrição do funcionamento do mundo dos espíritos. Não há experimentação científica por trás da construção dessa mitologia. E seus seguidores também são dogmáticos, posto que não os vejo, principalmente os divulgadores, a duvidar das explicações proferidas por seus mentores. Quando leio uma obra de Allan Kardec ou Chico Xavier, saltam aos olhos os erros, as imprecisões e até preconceitos. Mas a pergunta que realmente fica quando leio algo como “O Livro dos Espíritos” é: como as pessoas sabem que essas informações não saíram unicamente da imaginação do autor? Não seriam estas apenas obras de fantasia, semelhantes àquelas produzidas pelos grandes autores da literatura fantástica? Lembremo-nos do que eu disse anteriormente a respeito do cérebro e sobre as supostas experiências fora do corpo. Qualquer ser humano dotado de boa capacidade intelectual pode forjar a mediunidade valendo-se de artimanhas. Várias obras e feitos do espiritismo foram contestados e, submetidos a experimentos, mostraram-se falsos. Aqueles que não foram contestados não são necessariamente verdadeiros.

==##==

O silêncio começava a ser quebrado por ruídos extremamente baixos, difíceis de serem ouvidos, semelhantes a chiados e bipes. A escuridão, no entanto, permanecia.

- A definição de regras pela humanidade deve ter sido um processo árduo e demorado. Mas não é difícil perceber as vantagens de se condenar atos que consideramos criminosos, como os assassinatos. Ao defender a ideia de que matar é errado, cada ser humano está reduzindo as chances de que ele mesmo seja morto por alguém. A partir do momento que os indivíduos quiseram proteger a propriedade privada, devem ter intuído, sem muita dificuldade, que um bom meio de fazê-lo seria através da defesa de que roubar é um ato condenável. É lógico que há interesses por trás de cada lei. O código penal é imperfeito e está repleto de conteúdo polêmico e questionável. Estatísticas apontam que a justiça costuma beneficiar certos grupos sociais, na redação das leis e em sua execução. O que é preciso ficar claro é que nenhuma religião é dona daquilo que conhecemos como moral. Vários povos e tribos ao redor do mundo, de diferentes crenças ou sem crença mística alguma, definiram suas regras e seus códigos de ética de maneira independente, com semelhanças e diferenças entre si. As semelhanças devem ter surgido dos critérios mais óbvios, como aqueles que mencionei. O que as religiões vêm fazendo a partir de um determinado momento é uma tentativa - bem sucedida, como podemos perceber - de se colocarem como donas, criadoras e guardiãs da moral. É claro que, após essa apropriação, as religiões contribuíram com a criação e a manutenção das regras e costumes, mas nada disso aponta para a existência de uma suposta moral absoluta. A “regra de ouro”- “não façamos aos outros o que não gostaríamos que nos fizessem” - foi e é de conhecimento de várias culturas, em diferentes épocas e locais, independente das crenças religiosas. Não é tão difícil que, em sociedades minimamente organizadas, os indivíduos cheguem à conclusão de que tal regra seja a única capaz de beneficiar o maior número de pessoas. É importante considerar também a possível influência dos genes na manutenção das relações cordiais: um convívio pacífico e colaborativo com os semelhantes é um bom modo de tentar sobreviver e reproduzir-se.

==##==

A plateia aplaudia as considerações finais feitas por um dos debatedores. Era a vez de Alceu. Ele dirigiu-se ao púlpito e fez sua última exposição:

- Recentemente, encontrei Deus. Isso se deu nos últimos meses, ao longo de várias discussões que mantive, inclusive aqui, neste debate. Mas o Deus que tenho encontrado é o mesmo que encontrei várias vezes ao longo de minha vida. Controlador, manipulador, causador de intrigas e discriminador. Difusor da ignorância e indutor da cegueira. Uma ideia utilizada para preservar o comodismo e promover a intolerância. Um dos principais artifícios daqueles que pretendem transformar o mundo em quintal de suas convicções, independente dos anseios e características dos demais indivíduos. A humanidade precisa superar essa ideia e debruçar-se sobre questões realmente importantes, a fim de tentar alcançar o bem estar para todos ou, pelo menos, para o maior número possível de pessoas. Melhor ainda: para o maior número possível de seres vivos. Tal estágio nunca será alcançado por decreto ou imposição, e sim através de um processo gradual de melhoria da educação e das condições de vida da população. Vivemos um momento em que as pessoas acreditam em tudo o que leem na internet e veem na tevê, mas questionam grandes descobertas científicas apenas porque contrariam suas convicções. Isso evidencia um grave problema educacional. As pessoas não sabem o que é ciência. Desconhecem o rigoroso método de produção do saber científico. São levadas a pensar que um livro de ciências é semelhante a um livro religioso, no qual são apresentadas informações que não se sabe como teriam sido obtidas e que deveriam ser simplesmente aceitas. Em países como a Islândia, Dinamarca, Suécia, França, Grã-Bretanha, menos de quinze por cento da população rejeita a teoria da evolução das espécies. Em alguns desses países e outros mais, como a Noruega e a Finlândia, os ateus representam a maior parte da população. Com uma educação realmente boa, os indivíduos poderiam considerar uma gama muito mais ampla de informações e possibilidades ao tomar suas decisões, ao invés de ficarem à mercê de um conjunto limitante de crenças sem embasamento. Enquanto os humanos responsabilizarem os deuses pelos problemas que enfrentam, mesmo que devido à concessão do livre arbítrio a uma espécie imperfeita, nunca poderão levar adiante, pelas próprias mãos, um projeto de construção de uma sociedade próspera, sustentável e justa. Percebo que grande parte das religiões tem como característica o incentivo à aceitação das dificuldades, ao invés da luta contra elas, o que acaba por favorecer a conservação dos entraves. Muitas pessoas aceitam uma posição desconfortável porque são levadas a crer que uma ordem natural as mantém ali. Tenho a forte impressão de que grande parte dos problemas que enfrentamos - intolerância, discriminação, opressão, ignorância, violência, guerras, depressão, destruição dos recursos naturais, convívio difícil e desarmonioso - devem-se à grande quantidade de certezas infundadas espalhadas por todos os lados. Ações baseadas em certezas que não se justificam podem ser muito perigosas. Sempre que não houver um modo seguro de conhecer ou saber algo, aceitemos a dúvida e sintamo-nos estimulados a investigar. Nunca julguemos o comportamento de uma pessoa ou comunidade tendo como base apenas as próprias convicções. Vamos além: abandonemos as convicções e coloquemo-nos como dedicados discípulos da realidade. Desse modo, talvez possamos ver o surgimento de relações harmoniosas e de um entendimento agradável e benéfico entre todos.

Pausa. Boa parte do público mantinha-se atenta.

- Todos têm o direito de formar e manter suas próprias opiniões. E a sociedade está repleta dos mais diferentes pensamentos a respeito de todo e qualquer assunto. Com exceção de conceitos que terminem por causar ou estimular agressões e privações contra outros indivíduos, não há motivos para impedir ninguém de exercer sua liberdade individual. Muita gente enxerga um valor elevadíssimo nas convicções inabaláveis. Mas que vantagem há em, aos quarenta anos, bradar que possui as mesmas ideias que possuía aos vinte? A experiência da vida não vale nada? Pode mesmo um ser humano alcançar o conhecimento definitivo? Por que defender apaixonadamente os preceitos de determinada religião ou corrente, mesmo sabendo que não há um modo de comprovar que eles estejam absolutamente corretos?

Silêncio por mais alguns segundos.

- Sei que parece muito difícil à maioria das pessoas livrar-se de ideias tão reconfortantes. Mas acreditem que não é tão difícil e, após algum tempo, é recompensador. Minha experiência é muito positiva. Confesso que me senti abandonado e desprotegido no início, porém logo percebi que aquelas ideias não eram capazes de proteger-me de verdade. O erro não foi abandoná-las, e sim tê-las assumido em algum momento. Hoje valorizo a vida como poucos, pois, até onde sei, é a única que possuo. Deslumbro-me incansavelmente diante das belas estruturas do universo. Sinto um enorme desejo de permitir que todas as pessoas com boas intenções possam alcançar a felicidade, pois não vejo motivos para perseguir apenas a realização de meus anseios e entristece-me perceber o sofrimento de um semelhante. Descobri que a felicidade não é conquistada com a acumulação de bens, e sim com a possibilidade de desfrutar bons momentos próximo às pessoas de quem gosto, e sei que esta é a minha opinião e que outras pessoas encontram o prazer em outras coisas. Sinto-me seguro por estar em um ambiente propício ao surgimento e desenvolvimento de minha espécie e, ao mesmo tempo, preocupado com o que temos feito a esse ambiente. Aceito a morte como algo natural, tão natural quanto o longo processo que me trouxe à vida, e sei que, mesmo que ela represente o fim de minha consciência, continuarei a existir por algum tempo nas lembranças e nas minhas realizações, e as partículas físicas do meu corpo, cuja maior parte já se renova constantemente, continuarão a renovar-se em diferentes e inusitadas funções. Sofro, tenho medo e decepções? Sim, claro! Tudo isso faz parte da experiência de ser humano! Percebo, entretanto, que o que me move nessa direção é a preferência pela verdade, ao invés do consolo baseado em mentiras. Qual a melhor forma de viver a vida, se não a fundamentando na busca pela verdade? Não desejo que essa visão seja imposta, mas apenas difundida. Cada pessoa saberá aceitá-la no momento que lhe for mais propício. Isso é o que tenho a dizer. Duvidemos um pouco mais! Obrigado.

O público pôs-se a aplaudir. Muitos se levantaram e o fizeram de pé. Alceu sorria e fazia gestos de agradecimento quando uma forte luz atingiu seu rosto. Ele franziu a testa, incomodado pela claridade, apertou os olhos, deixando-os semiabertos, e ergueu um dos braços na altura deles, protegendo-os. Com dificuldade, tentava enxergar a fonte da iluminação. Após alguns segundos, percebeu que as incômodas luzes estavam instaladas do outro lado do auditório. Tinham sido acesas para facilitar a saída daqueles que já se retiravam. Os aplausos prosseguiram por mais algum tempo.

==##==

Na escuridão, os estranhos sons tornavam-se cada vez mais altos. Em alguns momentos, era possível ouvir perguntas.

- E se o universo tiver sido criado?

Surpreso, Alceu começou a sentir os dedos da mão, em seguida os braços. Após algum tempo, tinha a sensação de que possuía um corpo novamente. Parecia estar flutuando na posição horizontal, com a parte frontal do corpo voltada para baixo.

- E se a vida tiver um sentido?

Teve a impressão de estar se movendo, como se, aos poucos, ficasse de pé.

- Como ousa?

Uma forte luz atingiu seu rosto. Ele franziu a testa, incomodado pela claridade, apertou os olhos, deixando-os semiabertos, e ergueu um dos braços na altura deles, protegendo-os. Com dificuldade, tentava enxergar a fonte da iluminação. A luz aumentou rapidamente, envolvendo-o por completo.

Prólogo - Parte I - Parte II - Parte III - Parte IV - Parte V - Parte VI - Parte VII - Epílogo

2 comentários:

  1. Emocionante! Você é um excelente escritor. Gostei muito do conto. Já sou ateu, mas você me esclareceu muitas coisas.

    Como crítica construtiva, faltou se aprofundar mais na questão do bem e do mal. Talvez quem sabe numa próxima edição. O deus cristão é mau, mas os teístas mudam todo o senso de moralidade para exonerar deus de ter matado crianças na bíblia. Recomendo que veja esse vídeo do Dr. Sam Harris: http://youtu.be/5q5ARceWgJY. É só 11 minutos. Considero essa a melhor retórica já feita criticando a "moralidade cristã". Se quiser ver o debate por completo ele está aqui: http://goo.gl/haQKi. Está em inglês, porém se você usar o Google Tradutor dará para entender razoavelmente. O neurocientista Sam Harris defende que a moralidade é objetiva pois visa o bem estar humano que é objetivo.

    Muito obrigado por compartilhar seus pensamentos comigo. Vou tentar fazer o mesmo e espero que outros também façam. Que as forças mentais superiores o direcionem sempre ao caminho da felicidade, verdade e realização plena. 1 abraço!

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Cláudio, muito obrigado pelos comentários. Fico muito feliz em saber que o texto é capaz de agregar algo, mesmo para leitores que já são ateus. Quanto à questão moral, procurei evitar um maior aprofundamento nela, pois o objetivo geral do texto é contestar as convicções a respeito dos mitos religiosos. Nos poucos momentos em que toquei nessa questão, o fiz porque percebi que poderia contribuir com esse objetivo. Há muitos teístas, por exemplo, que tentam apresentar a questão moral como evidência para suas crenças. Tentarei aprofundar-me neste tema em futuros escritos. Quando começar publicar textos em seu blogue, por favor, avise-me, para que eu possa acompanhá-los. Tudo de bom para você também! Abraço!

      Excluir