28 de julho de 2011

O ateu que encontrou Deus
- Parte VI: Lamentações (O fim está próximo)


Prólogo - Parte I - Parte II - Parte III - Parte IV - Parte V - Parte VI - Parte VII - Epílogo

João nasceu em uma família carente de recursos. Desamparado, viveu com a mãe, solteira e alcoólatra, até por volta dos onze anos de idade, quando trocou o pequeno barraco pelas ruas do centro da cidade. Praticava pequenos furtos e assaltos. Aos quatorze, foi pego pela polícia e encaminhado a uma instituição de apoio e recuperação de menores delinquentes. Ali teve contato com o cristianismo, através de um programa da igreja que enviava representantes para dialogar com os jovens. Sempre fechado, porém interessado, acabou sendo acolhido pela ordem religiosa. Muito tempo passou-se até que se tornasse bispo. De fisionomia firme e cerrada, falava pouco, mas tratava muito bem aqueles com quem se relacionava, desde que não o irritassem, pois, nessas ocasiões, mostrava que a firmeza não estava apenas no semblante.

Naquele dia, o assistente adentrou a sala e avisou que havia chegado um visitante. O bispo autorizou a entrada, pois o encontro já estava marcado. Era Alceu. Sem muita delonga, o religioso expôs sua intenção, assim que ambos acomodaram-se:

- Meu caro Alceu, irei tratar de um assunto um tanto delicado, mas espero que compreenda. Como você já sabe, o Papa visitará o país em poucas semanas. Há grandes chances de que ele passe aqui pela região, devido à presença de duas cidades que são verdadeiras referências para os devotos. Eu sou, inclusive, integrante da comitiva que organiza os preparativos, o que me deixa sobremaneira orgulhoso. Mas há algo a incomodar-me. Trata-se do tal debate na universidade, no qual tratarão da religiosidade e do ateísmo. Ele será realizado em uma data muito próxima à da passagem do Santo Padre, o que poderia criar uma imagem negativa da região frente aos ilustres visitantes e à imprensa. Gostaria muito que vocês verificassem a possibilidade de adiar o evento.

Alceu informou:

- Entendo suas preocupações, Bispo João, mas, apesar de minha participação, não faço parte do comitê organizador. Prometo que levarei sua solicitação aos responsáveis. Acho difícil uma alteração, pois a visita do pontífice deve ter sido a motivação para a promoção do debate. Mas aproveito para tranquilizá-lo: não creio que o evento seja capaz de gerar tanto impacto. Um público muito restrito deverá interessar-se.

O bispo passou a exibir um semblante mais leve.

- Agradeço desde já pelo esforço que desprenderá, Alceu. Tentarei contatar um dos organizadores na universidade, a fim de aumentar as chances de obter algum êxito. Mas há algo que ainda me intriga. - continuou o bispo - Sobre que bases sustenta sua postura de não crer na existência de Deus? Possuo formação em filosofia e teologia e defendo a existência do criador de um modo lógico e racional, independente até da religião que professo, pois o teísmo não precisa, necessariamente, de crenças religiosas.

- O bispo não irá repetir os clássicos argumentos teológicos e filosóficos, não é?

- Não, não. Você já deve estar farto deles. Mas como você prova que Deus não existe?

- Na verdade, bispo, é impossível demonstrar a inexistência de certas coisas, como a das fadas. Minha postura não se baseia nesse tipo de prova e nem em fé, como a de muitos teístas. A base do meu pensamento é, na verdade, uma tentativa de manter a coerência diante daquilo que conheço e que posso perceber. No caso de Deus, apenas não vejo motivos para tomar sua existência como verdadeira, frente à completa ausência de provas a respeito.

- Como demonstra que sua postura não se baseia em um tipo de fé?

- Não costumo manter certezas absolutas. Percebo apenas que há coisas observáveis, demonstráveis, e outras não. Com base nisso, é possível retirar conclusões a respeito do que pode ser verdadeiro. Tenho plena consciência, no entanto, de que é bem provável que nunca deteremos alguma verdade plena, talvez com exceção de conceitos como os teoremas matemáticos, por exemplo.

- Você confia cegamente na ciência?

- É claro que não. Nem afirmo que a ciência encontrará mais respostas. Apenas suponho que irá encontrá-las, baseado no fato de que as está encontrando dia após dia. Se, no entanto, suas descobertas cessarem, este não será um motivo para inventar explicações. Também suponho que o sol nascerá amanhã, baseado naquilo que posso conhecer. Suposições feitas a partir de fatos observados não configuram fé. Mas são apenas suposições e assim devem ser encaradas. Não podemos nos esquecer de todos os benefícios que a ciência nos proporciona em suas diversas áreas de atuação e que tornam nossas vidas mais fáceis e confortáveis: física, química, mecânica, eletrônica, robótica, aeronáutica, história, matemática, estatística, geologia, medicina, entre tantas outras. E recordemo-nos também do enorme atraso imposto pela religião ao progresso do conhecimento ao longo dos séculos, apesar das figuras dos religiosos cientistas. A ciência não é detentora da verdade, mas sim de um método relativamente confiável que permite a constante revisão, ampliação e refinamento do conhecimento. O que considero um problema é o ato de inventar explicações e tomá-las por verdade.

- Mas cada indivíduo possui sua própria verdade. Você não conhece as percepções e sensações das outras pessoas.

- Concordo. E as verdades pessoais não me preocupam. - explicou Alceu - O que não posso aceitar é que alguém utilize suas próprias percepções para tentar interferir na vida de outras pessoas, muitas vezes contra a vontade delas. Entenda que não estou negando a necessidade das interações sociais. Afinal, a vida em sociedade só é possível graças a um contrato estabelecido entre seus indivíduos. A interferência nociva a que me refiro aqui é aquela que se dá através dos preconceitos ou das tentativas de limitar o comportamento e os direitos daqueles que pensam e agem de um modo diferente. Todos têm o direito de expressar suas opiniões, mas só podemos aceitar que afetem o contrato social se possuírem suficiente embasamento e não forem simples resultado de crendices. Uma verdadeira democracia respeita as decisões da maioria, sem restringir os direitos de qualquer grupo minoritário, isto é, sem tornar-se uma "ditadura da maioria". Imagine se a maioria pudesse optar “democraticamente” pelo extermínio de determinada minoria ou pela restrição dos direitos de algum grupo. Seria um regime democrático ou fascista? Até pouco tempo, nos Estados Unidos, os negros eram obrigados a utilizar banheiros públicos separados. Em todo o mundo, as mulheres não tinham direito ao voto. Não há como negar que tão melhor será uma democracia quanto mais educado e esclarecido for o seu povo. Se fôssemos obrigados a aceitar a fé e as verdades pessoais como justificativas para as ações que afetam outras pessoas, não poderíamos condenar um terrorista que apresentasse tais artifícios como motivação para suas atrocidades. O mais importante, entretanto, é que os teístas que se dizem mais racionais, como você, dificilmente defendem seu posicionamento com base em verdades pessoais. Geralmente, partem da mesma base que eu, isto é, a lógica e o conhecimento científico, porém chegam a conclusões diferentes, utilizando raciocínios que considero inválidos, como procuro demonstrar.

- Permita-me uma pequena provocação, Alceu. Não lhe parece que você tem certeza de que não deve ter certezas? Como fundamentar esta certeza? E, no fim das contas, não está fazendo um apelo à ignorância, idolatrando o ceticismo para defender o ateísmo?

- Reconhecer claramente o que conhecemos, admitir o que desconhecemos, não parar de buscar respostas por métodos que possuam um bom grau de confiabilidade, não inventar respostas para as perguntas que não conseguimos responder... Tudo isso está muito longe de um apelo à ignorância. Trata-se uma postura, no mínimo, coerente. O ateísmo não é a causa do meu ceticismo, isto é, não busco o ceticismo para justificar o ateísmo. Na verdade, o ceticismo é que veio primeiro. Acreditar não é algo que se escolhe: você acredita em algo com base no que observa e conhece. Não há como decidir acreditar. O máximo que você pode fazer é mentir sobre o próprio pensamento, para os outros e para si mesmo, ao fingir que acredita ou que não acredita. Essa tentativa de transformar a postura coerente de duvidar daquilo do que não posso ter certeza em uma espécie de certeza da dúvida é um tanto insana. Duvido porque não tenho certeza. Defendo que devemos agir de acordo com as informações a respeito das quais podemos ter um bom grau de confiança e tomar muita cautela diante do que não é possível conhecer ou concluir com alguma segurança. É perigoso lidar com problemas reais baseando-se em conclusões pouco embasadas. Não tenho certeza da dúvida. O que tenho são, simplesmente, dúvidas.

- A ciência pode conseguir mostrar como as coisas acontecem - registrou o bispo - mas não é capaz de provar que não existe uma realidade sobrenatural. Isso é uma questão filosófica. Você não consegue demonstrar, nem mesmo empiricamente, que o empirismo, isto é, a experimentação, é o único modo de se obter um conhecimento válido.

- O cérebro, aliado aos sentidos, que captam os dados externos, é a estrutura que nos permite conhecer aquilo que chamamos de “realidade”. - declarou Alceu - Mas não há motivos para supor que essa estrutura permita que apreendamos com perfeição as informações. O que sabemos, na verdade, é que o cérebro possui falhas e está suscetível a lapsos, traumas e desvios. Nossos sentidos também são falhos, causam ilusões perceptivas e nem são os melhores que existem. Há outros animais com sentidos diferentes e até mais apurados, capazes de perceber a realidade de outra maneira. Alguns podem enxergar a luz ultravioleta, por exemplo. Com a evolução científica, a humanidade ampliou sua capacidade de captar informações, utilizando máquinas, instrumentos e sensores. Tudo o que conhecemos é apreendido através desse aparato natural e tecnológico. É a partir disso que formulamos nossos pressupostos e axiomas básicos. Assumimos que existimos, pois nos captamos inseridos em um meio junto a outros indivíduos, os quais também presumimos existir. Também assumimos que o que captamos pelos sentidos é a realidade, tendo sempre em mente que eles ou o cérebro podem falhar e causar enganos. Se relativizássemos ao extremo e assumíssemos que tudo é um grande engano e que não devemos considerar nem esses pressupostos básicos, então não haveria razão para prosseguirmos nesta conversa, pois estaríamos aceitando que todas as pessoas pudessem tomar qualquer devaneio como verdade, transformando a vida em sociedade em um caos inimaginável, bem maior do que já é. Sabemos que todos são livres para agir desse modo irracional, mas, se vamos aceitar ou não esse comportamento, isso dependerá do tipo de sociedade em que queremos viver.

- Em que tipo de sociedade você quer viver?

- Em um tipo que respeita a individualidade e a liberdade de cada um de seus integrantes. Uma sociedade na qual os direitos de um indivíduo não poderiam ser limitados devido a simples opiniões de outros. O que proponho está longe de um modelo de total permissividade. É claro que existiriam limites: eles estariam, principalmente, no respeito aos direitos de cada um. O direito às condições para um sono adequado, por exemplo, é que gera o dever de respeitar o silêncio após determinado horário. Mas as restrições e proibições deveriam estar amparadas por conhecimentos suficientemente embasados. Crenças religiosas não fazem parte desse tipo de conhecimento, pois se baseiam em suposições não comprovadas e, muitas vezes, não comprováveis. O que considero muito positivo é que nossa forma de organização social já é muito semelhante a esta que descrevi. A coisa mais importante que devemos fazer é preservar essas características e coibir os impulsos daqueles que desejam subjugar a realidade a seus desejos e caprichos.

- A existência de Deus pode ser algo evidente para a pessoa que nele crê. Tão evidente quanto a própria existência. - observou o bispo.

- Lamento, bispo, mas não há como aceitar que tal ideia seja evidente. Já vi muitas pessoas tentarem colocar a questão dessa forma, querendo fazer parecer que o ônus da prova cabe ao ateu, como se este fosse o autor da contestação ou da afirmação que desafia o óbvio. Isso é uma distorção tremenda, pois quem contesta o óbvio é aquele que afirma a existência do sobrenatural. Podemos identificar claramente os níveis das conclusões ao longo do processo de formação do conhecimento. Uma criança percebe a existência das entidades materiais que a rodeiam. Através da repetição, começa a apreender diversas noções, como a de causalidade. Percebe, por exemplo, que, toda vez que empurrar um objeto leve, este irá deslocar-se. Mas mesmo essa simples conclusão já se encontra em um nível mais alto do que a mera percepção do ambiente. A capacidade de classificar e agrupar os objetos também é de um nível superior. A afirmação da existência do sobrenatural e de divindades está em um nível ainda mais alto, pois necessita de um raciocínio mais elaborado. Ateus e teístas, em um nível mais básico, percebem a realidade praticamente do mesmo modo. Dificilmente vejo um teísta a apresentar informações que tenha captado através de um meio diferente daqueles de que disponho. Portanto, para defender como verdadeiras suas afirmações, o teísta precisa demonstrar claramente como chegou a suas conclusões a partir da realidade por ele conhecida, que, na maior parte dos casos, é a mesma realidade conhecida por um ateu. Este último, a princípio, não necessita demonstrar nada nesse sentido, pois não está fazendo afirmações que ultrapassem a realidade percebida. No entanto, frente à afirmação do teísta, surge, para o ateu, a necessidade de demover o crente de sua iniciativa de tomar como evidente algo que não é. Para isso, um ateu dogmático deve mostrar como concluiu que divindades não existem, enquanto um ateu cético, como eu, só precisa mostrar que não há motivos para considerar verdadeira a existência do sobrenatural.

- Em uma discussão filosófica, o sobrenatural pode ser aceito.

- Pode ser aceito enquanto hipótese, mas nunca demonstrado como verdade. De que tipo de filosofia está falando? A filosofia é e sempre foi muito importante para a ciência e para o desenvolvimento do conhecimento. O bispo sabe que valorizo essa disciplina ao extremo, pois também possuo formação na área. Mas ela evoluiu com o passar do tempo, juntamente com a ciência. Suposições a respeito do sobrenatural, hoje em dia, não possuem mais o peso que possuíam há mais de dois mil anos, quando Aristóteles fazia a metafísica dar seus primeiros grandes passos. Tenho percebido uma tentativa de refúgio na filosofia e na teologia por parte dos teístas, mas essas disciplinas não eliminam a necessidade do método científico e de uma utilização sensata da lógica para a construção de um saber minimamente confiável. Podemos conjecturar sobre possibilidades, desde que as encaremos como tal. A simples discussão filosófica, sem se apoiar em uma base científica, isto é, sem recorrer a uma base de conhecimentos que consideremos segura, não é capaz de chegar à confirmação do sobrenatural e nem à sua negação, e isso se aplica a toda a gama de possíveis suposições. É claro que não existem métodos totalmente confiáveis. Nem nossos sentidos o são. O que temos é uma padronização, que seguimos testando, revisando e aperfeiçoando. Sem contar que sabemos muito bem identificar métodos não confiáveis, como visões durante o sono ou estados de consciência alterados, relatos distantes de milagres ou a aceitação incondicional de algo que está escrito em um livro milenar.

- Com uma postura tão cética, como você conclui que o ateísmo está mais próximo da verdade que o teísmo? - perguntou o bispo.

- A postura de manter uma dúvida racional e buscar por respostas, sem aceitar pressuposições não embasadas, pode aproximar-lhe da verdade, seja ela qual for. Porém, se você tiver começado assumindo algo como verdade, como fazem muitos teístas, terá se aproximado apenas daquilo que assumiu, passando ao largo de todas as demais possibilidades que poderiam ser verdadeiras.

- Acontece que muitos teístas, mais moderados, não partem do pressuposto de que Deus existe. Eles chegam à conclusão sobre sua existência através de argumentos racionais.

- Bispo João, ao longo de tantos anos tratando deste assunto, ainda não fui apresentado a nenhum argumento convincente. Por isso, continuo sem motivos para acreditar na existência de Deus. - expôs Alceu - Nasci sem crenças, obviamente. Em diversos momentos de minha vida, foram-me apresentadas hipóteses a respeito do problema da existência do universo e de outros problemas não resolvidos pela humanidade. Em outros momentos, formulei minhas próprias. Várias dessas hipóteses foram satisfatoriamente testadas por experimentos. Outras ficaram à mercê de argumentações incapazes de fornecer-me alguma certeza ou de convencer-me a levá-las mais a sério do que outras hipóteses. Tenho certezas sobre o suposto surgimento do universo? Não. E acho que boa parte dos teístas moderados também não tem certezas sobre a existência de Deus. Tenho certeza de que Deus não existe? Não, pois existe uma grande possibilidade de que muitas coisas desconhecidas existam. A probabilidade da existência do Deus dos cristãos é alta? Não me parece, pois, frente às dezenas de hipóteses que podemos formular, essa é apenas mais uma. Através de registros históricos, já podemos estudar as origens e a evolução das mitologias e crenças ao longo da história da humanidade. Lembre-se do que eu disse sobre a percepção da realidade e sobre o que realmente pode ser considerado evidente. E quanto ao Deus pessoal, que nos observa, ouve, julga e ama? Ora, aqui a probabilidade é ainda menor, pois estamos especificando demais, sem critério algum. Frente a isso, devo viver como se essa entidade existisse ou como se não existisse? Minha resposta é que devo viver de modo indiferente a essa questão. É importante lembrar que muitos teístas que se dizem moderados costumam incentivar o teísmo fundamentalista de outras pessoas, sem nenhum peso na consciência.

- Alceu, explicar as origens de uma crença não invalida o objeto dessa crença.

- Quando o objeto da crença não pode ser comprovado, explicar a origem da crença colabora com a aceitação de que ela pode não passar de um engano. Conforme eu já disse, ainda não vi, até hoje, uma confirmação para o objeto da crença da qual estamos tratando, e conheço motivos, os quais estou mostrando aqui, para pensar que é bastante improvável que cheguemos a essa confirmação. Entender as origens da crença, então, ajuda a desacreditar ainda mais o seu objeto.

- Pelo que estou entendendo, você encara a existência de Deus como mera hipótese.

- Por que motivos eu deveria encará-la de outro modo? Não foi o bispo quem disse que sua postura é baseada na razão? Podemos formular várias hipóteses para a questão do universo, e muitas já foram formuladas. A hipótese da existência de um criador só existe porque foi formulada em algum momento, ora! Como não é possível testar objetivamente nenhuma delas, não posso negar esta hipótese em específico, bem como nenhuma outra. Como ter certeza de que esta não é uma simples hipótese, mas a verdade absoluta? Sinceramente, não entendo como vocês consideram plausível a existência de um ser inteligente, não natural, e que, conscientemente, por vontade própria - vontade, uma característica que observamos nos seres vivos - decidiu criar o universo. Isso não lhe soa um tanto infantil? O que dizer, então, do Deus amoroso, que nos ouve e nos julga?

- Não me interessa como meu pensamento lhe parece! - reclamou o bispo, elevando um pouco o tom de voz - No meu caso, o teísmo possui bases mais profundas, como a lógica. Apresentarei, agora, uma argumentação coerente em favor da existência de um criador do universo. Caberá a você apontar alguma inconsistência.

Alceu percebeu um tom desafiador na voz do bispo. Sentiu-se um pouco incomodado, uma vez que nunca encarava as discussões como disputas a vencer, e sim como oportunidades de compartilhar pensamentos e visões e até de rever os próprios posicionamentos. Bispo João, então, prosseguiu:

- Se algo eterno não existisse, o "nada" teria existido em algum momento. Mas é impossível que algo tenha surgido do “nada”, pois este estado é a ausência de qualquer coisa, inclusive de potencialidades. Logo, existe algo eterno. Este algo não pode existir desde sempre, pois infinito temporal passado não existe. Logo, ele é atemporal, isto é, sem tempo. A matéria é dependente do tempo, que é a sucessão de eventos ou estados. Para que a matéria fosse eterna, teria que ser independente do tempo. Segundo as teorias científicas, o tempo, o espaço e a matéria surgiram no Big Bang, ou seja, a matéria só existe no universo. Portanto, o algo atemporal também deve ser imaterial. Algum problema até aqui?

- Sim, há alguns problemas. - observou Alceu.

- Permita-me apresentar o raciocínio de um modo levemente diferente. - continuou o bispo - Existem coisas contingentes na natureza. Tais coisas devem sua existência a outras coisas. Se todas as coisas fossem assim, contingentes, então, em algum momento, não teria existido nada. Mas, se isso tivesse ocorrido, nada existiria, pois não haveria nada para trazer algo à existência. Portanto, se há coisas que existem, então, necessariamente, deve haver algo cuja existência não dependa de nenhuma outra coisa. Ainda vê problemas?

- Bispo João, quando fazemos suposições a respeito de conceitos que nossa limitada capacidade de percepção não nos permite apreender, corremos o risco de cair em simples jogos de palavras. Se o “nada” é a ausência de tudo, inclusive de potencialidades, também deve ser a ausência de tempo. Logo, não faria sentido falar em “nada” antes da existência de alguma coisa. Não é necessário pensar em termos de uma transição, do nada para o todo. Falar com tanta propriedade sobre um momento anterior ao universo, e ainda chamá-lo de “nada”, não faz muito sentido. Um universo independente de qualquer outra coisa não é mais absurdo do que um criador independente de qualquer outra coisa. E de onde o criador teria tirado a matéria do universo? Do nada? Pensemos o seguinte: o universo, provavelmente, é limitado, espacial e temporalmente. Podemos supor que seus limites sejam os limites da existência, não havendo nada além deles. Nem faria sentido falar em “além deles”, pois é provável que não haja um lado de fora. Por que se sentir forçado a aplicar a lei de causalidade, que é algo que observamos dentro do universo, isto é, dentro do que é natural, a algo que estaria além da natureza? Além disso, você supôs de modo muito fácil algo atemporal, independente do tempo, apenas para que esse algo não fosse eterno. À parte de tudo isso, podemos supor que o universo sempre tenha existido, talvez até de modo atemporal, como disse o bispo sobre o criador. O tempo estaria apenas dentro dele, como uma de suas dimensões. Ou imaginar um universo cíclico, que se renova periodicamente, e que nos permite observar apenas o ciclo atual. Podemos, ainda, estar inseridos em uma simulação muito bem feita. Se os seres de algum universo pudessem atingir a capacidade de criar simulações, o que parece bem possível quando observamos o ritmo acelerado do avanço tecnológico, então, em algum momento, teríamos infindáveis simulações. Neste cenário, por uma questão numérica, seriam maiores as chances de estarmos em uma dessas simulações, ao invés de no universo original. E se o universo tiver surgido a partir de uma estrutura impessoal que possui a propriedade de gerar todos os universos possíveis? Perceba que apenas apresentei suposições. Não há motivos, no entanto, para levar a hipótese de um criador para o universo mais a sério que essas ou qualquer outra que formulássemos. Não nos esqueçamos de que a noção da humanidade a respeito dos limites do universo ampliou-se ao longo do tempo. Os homens já pensaram que seu continente fosse todo o universo, depois pensaram o mesmo sobre o planeta. Não faz muito tempo, descobriram que existem outras galáxias. Não estou afirmando que os limites irão expandir-se ainda mais, mas podemos também supor que isso ocorrerá.

- Não compreendi sua objeção à atemporalidade.

- O conceito de atemporalidade, nos moldes que o bispo está propondo, é de difícil apreensão. Pode ser que nem exista tal coisa. Como pode um objeto atemporal relacionar-se com um objeto temporal? A passagem de tempo em um dos objetos não poderia ser usada para medir o tempo no outro objeto? Não se os tempos fossem dimensões internas de cada um e independentes entre si. Neste sentido, podemos encarar o tempo no universo como uma dimensão não muito diferente das espaciais. A relação entre dois momentos distintos seria muito parecida com a relação entre dois pontos do espaço: uma relação de distância. Devido à relatividade, seria mais correto, inclusive, falarmos em pontos-momentos. Assim como as dimensões espaciais teriam seus limites, a temporal também os teria. Além disso, se podemos supor um único criador para o universo, por que não supor múltiplos criadores, como uma espécie de comunidade de deuses? Ou uma hierarquia: o universo possui um criador, que possui um criador, até chegar a um criador no topo. Isso ainda seria um tipo de teísmo, mas é um bom modo de atentar para o fato de que postular um criador para o universo não encerra o problema. Sem contar que, seguindo essa lógica, podemos chegar a hipóteses um tanto absurdas e até meio pueris. Você pode até apelar para a "navalha de Ockham" e insistir que devemos assumir o menor número de entidades possível. Ora, nesse caso, o correto seria ficarmos com uma única entidade: o próprio universo. Afinal, um cenário com duas entidades, o universo e um criador, cuja origem é tão desconhecida quanto a do universo, é bem mais complexo. A variável "criador" é desnecessária e serve apenas para complicar o problema: explicar a origem do sistema criador-universo deve ser bem mais difícil do que explicar a origem do sistema universo, pois, no fim das contas, como procuro deixar claro, qualquer característica especial que você tentar atribuir ao criador poderá ser atribuída ao universo. Para não deixar de fora outras variantes do teísmo, devemos considerar também o seguinte: se já é difícil defender como certa a existência de um criador, é ainda mais difícil defender o mesmo quanto a um criador que nos ama, que ditou regras para que seguíssemos, que nos ouve, observa e julga, posto que este segundo tipo é bem mais específico, exigindo uma argumentação bem mais extensa e trabalhosa, e que, provavelmente, precisaria ainda da comprovação do primeiro tipo.

- Um criador amoroso não é mais absurdo que um criador qualquer. Não é pela quantidade de argumentos que se comprova um ou outro tipo de criador. Você não precisa provar as características de Deus para afirmar que ele existe.

- Para simplesmente afirmar, não. Mas para convencer alguém disso, precisa sim. Defender um criador amoroso, observador e juiz é bem mais difícil do que simplesmente defender a existência de algo eterno. Para tentar provar um Deus com tantas características, seria preciso demonstrar a presença de cada uma dessas características.

- Alceu, minha argumentação não se torna inválida apenas porque você não consegue apreender alguns conceitos.

- Não é isso, bispo. Não se trata de um problema com a minha capacidade cognitiva. A simples criação de conceitos não transforma em realidade aquilo que eles descrevem. A questão da refutabilidade de argumentos desse tipo é um tanto subjetiva. Você apresentou bons argumentos, mas uma argumentação muito boa não é suficiente para defender e influenciar práticas como se existisse um ser superior. Para isso, além de ser boa, precisaria ser incontestável. Em vários momentos, sinto que estamos falando de definições inatingíveis, sem uma ligação íntima com o real. Acho muito interessante esse tipo de discussão desafiadora e estimulante, capaz de proporcionar momentos prazerosos. Não vejo problemas em uma pessoa que aprecia entrar nessas discussões do lado do teísmo, e eu mesmo poderia debater a favor do teísmo e também achar interessante. Seria como trocar as peças pretas pelas brancas em uma partida de xadrez, ou vice-versa. Só não compreendo quando algumas das suposições começam a ser levadas muito a sério, como no caso de teístas que baseiam seu pensamento na lógica, porém se põem a defender algumas insanidades de fundamentalistas. Posso fazer suposições sobre o desconhecido durante uma discussão, mas nunca tomá-las por verdade ao interagir com a realidade, influenciar em decisões importantes ou avaliar uma postura possivelmente discriminatória. Quando vejo a realidade sofrer um impacto desferido pela suposta existência de um criador, penso que pode estar havendo um exagero. Ao afirmar-me como ateu cético, não intenciono desferir um impacto pelo lado oposto, abalando ainda mais a realidade, mas apenas esclarecer que não acho saudável conferir a simples suposições um peso tão grande. Você se diz racional, dá à razão o seu devido valor, mas sabe que existem pessoas, por diversos interesses, disseminando a ignorância, o obscurantismo, a intolerância e uma visão de mundo compatível com a da Idade Média. Torço para que os indivíduos mais racionais, independente de se denominarem teístas, ateus ou agnósticos, consigam convencer o restante da sociedade a abandonar a ignorância e sua consequência mais nefasta: a intolerância.

- Alceu, compreendo suas preocupações, mas não estou utilizando a lógica de modo irresponsável. Os argumentos que apresentei foram muito bem embasados. Veja, por exemplo, a questão do tempo infinito no passado. Se o tempo fosse infinito no passado, haveria uma quantidade infinita de dias antes de hoje. Então, hoje seria o fim do infinito. Mas infinito não tem fim. Se chegamos ao dia de hoje, então o passado não é infinito.

- Bispo João, concordo que é possível que o tempo não seja infinito no passado. Aliás, penso que não existe infinito real, mas apenas conceitual. “Infinito” é a palavra que utilizamos para nos referir a grandezas que não conseguimos apreender, do mesmo modo que empregamos a palavra “aleatório” para tratar de eventos cujas causas não são completamente conhecidas. Mas pretendo demonstrar que seus argumentos não estão tão embasados. Analisemos uma das hipóteses que apresentei: aquela que supõe que universo surgiu de uma estrutura impessoal que possui a propriedade de gerar todos os universos possíveis.

- Está supondo matéria sem tempo? Como isso seria possível? É um absurdo!

- O bispo acha um absurdo supor a existência de matéria sem tempo, devido a um conhecimento científico, mas acha normal um ser atemporal, imaterial e, ainda por cima, pessoal, isto é, dotado de características intelectuais semelhantes às humanas, como raciocínio, intenção, entre outras. Estranho... E quanto ao tempo sem matéria, que o bispo está assumindo como possível ao perguntar o que havia antes do universo? Mas o fato é que não estou supondo matéria sem tempo. Fui mal compreendido. A estrutura que supus é atemporal e imaterial, como o criador que você supõe. A diferença é que ela é impessoal: não possui intenção, não ama, não planeja. Sua principal propriedade seria a capacidade de gerar automaticamente todos os universos possíveis, mesmo que só haja um universo possível. Se você pode supor um criador inteligente e pessoal, posso tranquilamente supor tal entidade.

- Se essa estrutura atemporal e imaterial fosse impessoal, a criação de todos os universos possíveis deveria ter acontecido imediatamente à sua existência, ou seja, os universos criados existiriam desde sempre. - contestou o bispo - Mas nosso universo não existe desde sempre, como já concordamos. O criador precisa ser pessoal.

- “Imediatamente à sua existência” e “desde sempre” são conceitos temporais. Se a estrutura é atemporal, não existe desde sempre, pois é independente do tempo, isto é, não há “sempre” para ela. Os universos, portanto, foram gerados independentemente do tempo. Você fala como se a estrutura, caso fosse pessoal, pudesse planejar um momento para criar os universos, em contrapartida a “imediatamente à sua existência” ou “desde sempre”. Mas uma estrutura que planeja um momento é temporal, pois está desenvolvendo um processo decisório e lidando com o tempo, situando os universos em determinado ponto de uma sequência temporal externa a esses universos.

Bispo João reagiu:

- Em agentes automáticos, o efeito é provocado logo que eles existem. Se os universos são gerados independentemente do tempo, então são gerados todos juntos, já que não podem ter sido gerados um após o outro. A estrutura pessoal, por outro lado, não planejaria um momento para criar os universos, mas apenas decidiria sair da letargia, da inércia. Sei que parece estranho, mas imagino duas possibilidades que podem resolver o problema da interação entre objetos temporais e atemporais: na primeira, suponho que o criador torna-se temporal quando cria o universo; na segunda, suponho que ele continua atemporal e enxerga o universo de maneira simultânea ou panorâmica, ou seja, ele vê todos os eventos do passado, do presente e do futuro, como se observasse um painel com uma sequência fotográfica.

- Bispo, se vai mesmo supor a atemporalidade, esteja preparado para lidar com os problemas de um conceito tão alheio à nossa percepção. A palavra “atemporal”, do modo como você está propondo, não significa “existe desde sempre”, e sim “sem tempo”. Não é adequado falar em “logo que a estrutura existe”, pois, se ela é atemporal, então não vem à existência, não sofre transição, mas existe de modo independente do tempo. Se concordamos que o tempo só existe no universo, ou nos universos, então não há motivos para supor um tempo absoluto, acima de tudo. Os universos não são gerados todos juntos, isto é, ao mesmo tempo, e nem um após o outro, pois estas expressões pressupõem a existência de tempo fora dos universos. E a estrutura pessoal? Se ela pode decidir passar de um estado de letargia e inércia para um estado de ação, então está sujeita a uma transição de estados, o que implica em sujeição ao tempo.

- Deus criou o tempo em dado momento. Não estou pressupondo que o tempo já existia. O universo é uma consequência lógica, e não cronológica, do criador. Concordo que é estranho, mas é uma necessidade.

- Você disse que não está pressupondo que o tempo já existia, mas afirmou que Deus criou o tempo em dado momento. Que história é essa? Só existem momentos se houver tempo. O bispo está afastando-se cada vez mais de um raciocínio realmente lógico, além de estar contradizendo-se. Um objeto atemporal não sofreu transição da inexistência para a existência porque não está sujeito ao tempo. Mas ele não existe desde sempre, isto é, não é eterno, justamente porque não está sujeito ao tempo. Se não há tempo, não há “sempre”. Portanto, a estrutura que supus não existe eternamente ou desde sempre, pois é atemporal. Ela simplesmente existe, independentemente do tempo. E, como consequência lógica de sua existência, e não cronológica ou temporal, todos os universos possíveis existem. Você disse o mesmo sobre o seu criador: que o universo é uma consequência lógica dele. Estou apenas parafraseando sua hipótese, para evidenciar alguns absurdos e mostrar que a pessoalidade é desnecessária. Alguns dos universos gerados podem ter dimensões semelhantes à nossa dimensão temporal. A estrutura geradora, no entanto, não estaria sujeita a nenhum desses tempos, pois é atemporal. Não há como existir um momento da criação, se não houver um tempo no qual localizar esse momento.

- Alceu, como poderia a estrutura atemporal ter gerado seu efeito há apenas quatorze bilhões de anos atrás e não mais? A minha resposta é: há quatorze bilhões de anos, o criador decidiu sair do estado de imobilidade e praticar suas potencialidades. Deus não ficou esperando. Ele existia imutável, inativo, até que decidiu criar.

- Bispo, por que continua falando como se existisse um tempo que subjuga até mesmo o criador pessoal e atemporal que você supõe? Ele é ou não é atemporal? Os quatorze bilhões de anos só existem dentro do universo. Trata-se de uma contagem entre um momento próximo ao início do universo, mas dentro dele, e o momento presente. Se o criador é atemporal e não existe um tempo absoluto e infinito, como ele pôde escolher um momento para a criação do universo? E se ele mudou de estado, então está sujeito ao tempo.

- E se Deus não tiver mudado de estado? E se ele existir de modo atemporal e tiver apenas determinado o momento da criação?

- Determinado o momento? Em que sequência temporal estaria esse momento? Em um tempo absoluto? Vamos supor, então, que exista um tempo absoluto, além do universo, no qual seja possível determinar o tal momento. Um objeto atemporal deve ser estático, pois não pode sofrer transformação alguma. Portanto, um possível criador atemporal teria que ter o referido momento gravado, programado, registrado, imóvel. Logo, poderia ser impessoal. Nenhuma pessoalidade seria necessária.

- Alceu, o que pretende com essa contra-argumentação?

- Pretendo mostrar que é desnecessário e absurdo que o criador seja pessoal, isto é, que ele tenha características humanas, como as capacidades de pensar, decidir e agir. Uma estrutura impessoal com a propriedade de gerar todos os universos possíveis teria dado conta do recado. E creio que o bispo já tenha percebido isso. Agora, pretendo demonstrar que a existência do criador é desnecessária. Aliás, o que quero mesmo mostrar ao bispo é que não há e dificilmente haverá motivos convincentes para tomar a hipótese da existência de um criador como verdade absoluta.

(continua...)


2 comentários:

  1. Sensacional! O bispo quando refutado age semelhantemente aos crentes. Repete os mesmos erros até que o interlocutor se canse. Se não se cansar fica desesperado, mas nunca admite estar errado.

    Estou muito ansioso para o desfecho. Aliás, com quem o Alceu vai debater? O final tem que apresentar os "melhores" argumentos teístas sendo refutados.

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  2. Na próxima parte, a conversa com o bispo continua. O debate permanecerá girando em torno dessa tentativa dos teístas de colocar a existência de Deus como algo óbvio ou necessário, que é a estratégia mais utilizada por aqueles que se dizem racionais e lógicos.

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